O Espião (2020)



O ESPIÃO

Direção: Maite Alberdi

Ano: 2020

País de origem: Chile

    Texto escrito por Matheus C. Fontes

    Com sua estreia no Festival de Sundance, no início do ano, O Espião começou uma jornada pelos mais diversos eventos de cinema até chegar ao Brasil no fim de setembro, como parte da programação do É Tudo Verdade 2020, festival brasileiro que reúne documentários nacionais e internacionais a cada ano. Dirigido pela chilena Maite Alberdi, o filme acompanha Sergio Chamy, um idoso que responde a um anúncio no jornal. Um emprego é oferecido a um homem entre 80 e 90 anos e que tenha disponibilidade para morar fora de casa por 3 meses. Um detetive particular, Rómulo Aitken, foi contratado para investigar se uma senhora está sofrendo maus-tratos dentro da casa de repouso em que mora. O trabalho de Sergio é exatamente infiltrar-se no local, à paisana, para coletar informações sobre a veracidade das denúncias feitas pela filha da idosa.

    O DOCUMENTÁRIO NEO-NOIR

    É incrível a quantidade e a profundidade das temáticas abordadas pela diretora em menos de 90 minutos de projeção. A primeira delas consiste em explorar os próprios limites do documentário, em termos estruturais, formais e éticos. Em certos momentos, é difícil notar o fato de não estarmos acompanhando uma ficção com roteiro estruturado, embora o filme faça questão de mostrar a presença da equipe de filmagens. Esta não desempenha um papel apenas observacional, como em grande parte dos documentários, mas é um agente ativo para que a história pudesse ser contada.

    Maite Alberdi começa a acompanhar a vida na casa de repouso meses antes da chegada de Sergio, para que não houvesse suspeitas de sua presença no local durante as investigações. Nestes primeiros contatos com os moradores, há uma certa desconfiança dos idosos em relação ao que está acontecendo. Uma senhora chega a protagonizar uma das cenas mais engraçadas do longa, ao perceber o equipamento de captação de som e tentar chamar a atenção de uma outra moradora para que ela também olhe para o microfone. É intrigante acompanhar a forma como aquelas pessoas mudam de atitude diante das câmeras ao longo das semanas. De conversas duvidosas sobre a equipe, elas passam a agir com muito mais naturalidade, como se o equipamento fosse parte integrante daquela comunidade.

    Ao mesmo tempo em que acompanhamos um documentário, a diretora decide brincar com a forma cinematográfica, ao utilizar o caráter investigativo da história para introduzir elementos noir. Isto fica evidente principalmente durante o primeiro ato, no qual há maior liberdade para manipulação da mise-en-scène. Assim, as persianas do escritório do detetive particular são usadas para evocar a estética noir, da mesma forma como as roupas de Sergio rememoram os figurinos dos personagens que povoaram o estilo visual e narrativo do subgênero nas décadas de 1940 e 1950.

    O ANÚNCIO DE EMPREGO

    O primeiro ato também é responsável por iniciar as discussões sobre a vida durante a velhice. Vários dos entrevistados para a vaga de espião ressaltam o espanto que tiveram ao se depararem diante de um anúncio de emprego para aquela faixa etária, já que as empresas tendem a excluir essas pessoas do mercado de trabalho.

    A partir da história de Sergio, a temática ganha contornos muito mais pessoais, pois acompanhamos a importância daquilo na sua vida. Ele havia perdido a esposa há alguns meses e, na tentativa de justificar para a filha sua decisão de assumir aquele cargo, explica que a idade lhe trouxe uma sensação de inutilidade e a solidão sentida em casa traz sempre à tona a memória de sua falecida companheira, sendo aquela ocupação uma forma de conferir significado aos seus dias.

    Esta inclusão de idosos no mercado encara diversos obstáculos na nossa sociedade atual. O principal talvez seja a exclusão digital, também abordada durante o filme. Acompanhamos as várias tentativas do detetive particular de ensinar o protagonista a manusear alguns equipamentos eletrônicos, que serão utilizados para a coleta de provas e para a comunicação entre eles durante a investigação. Uma caneta e um par de óculos com câmeras escondidas conferem um charme especial à narrativa e evidenciam como o mundo evoluiu e não foi capaz de integrar os mais velhos nos seus avanços tecnológicos, limitando suas possibilidades.

    A CASA DE REPOUSO

    Há, então, a introdução de Sergio na casa de repouso, o que conduz a narrativa para uma abordagem altamente humana, mostrando o funcionamento das relações dentro daquele espaço limitado, mas sem perder o teor investigativo. O protagonista entra como um morador comum e é recepcionado com muito carinho por algumas das idosas, cujos olhares são atraídos para o agente infiltrado, já que se trata de um ambiente ocupado majoritariamente por mulheres.

    Talvez um dos maiores feitos do documentário seja não tratar aquela realidade de uma forma triste e desoladora, como a maior parte do público esperaria (me incluo aqui). Ao invés disso, o filme mostra que aquelas pessoas, mesmo idosas e relativamente isoladas, ainda possuem uma vida. Ainda amam, choram, sorriem e interagem como qualquer outro ser humano, mesmo que a sociedade insista em vê-los como diferentes.

    Logo nos primeiros dias, uma das senhoras começa a conversar muito com Sergio e admite, para a diretora da instituição, que gosta muito dele, chegando até mesmo a mencionar um possível casamento na capela local. Com isto, os dois protagonizam um dos diálogos mais lindos e significativos sobre amor, luto e relacionamento que vi em produções recentes. A iniciativa do protagonista de chamá-la para ter uma conversa honesta sobre seus sentimentos é uma lição para espectadores de realidades e idades diversas, sendo ainda mais forte por se tratar de um documentário, sem um roteiro com falas planejadas.

    O arco dramático de Sergio dentro da casa de repouso é muito interessante, pois ele entra muito focado no objetivo de descobrir o que acontece ali dentro, mas, assim como o público e a própria documentarista, sua atenção é progressivamente desviada para as vidas das pessoas que habitam aquele espaço. Somos apresentados a diferentes histórias de vida, como a senhora que acredita que sua mãe ainda está viva e os funcionários usam ligações telefônicas para fingir ser ela e manter a idosa calma. Neste ponto, a pergunta vem à mente: isso é ético?

    A própria natureza do documentário tende a levantar questões éticas em quem está assistindo. Não à toa, foi noticiado que os debates sobre o filme após suas sessões em Sundance eram altamente acalorados. Afinal, é justo filmar aqueles idosos e introduzir um senhor por três meses em um local onde irá criar laços, mesmo sabendo que é temporário? A diretora não tem a pretensão de responder essas perguntas, permitindo que o espectador chegue a suas próprias conclusões. Entretanto, o principal ponto não é chegar a uma resposta, mas perceber a coragem e a capacidade do filme em levantar esses questionamentos.

    Com o passar do tempo, o envolvimento do protagonista com aquela realidade é cada vez mais evidente. Seus relatórios diários para o detetive particular passam a ser menos assíduos e mais focados nos pequenos detalhes de sua convivência ali. Ele deixa de ser apenas um mecanismo de investigação e passa a ser um agente ativo naquela comunidade, um espelho do próprio papel da documentarista na história que está sendo contada. Sergio acaba envolvendo-se com uma das moradoras, que tem Alzheimer e não consegue lembrar nem mesmo que sua família vem visitá-la frequentemente. Em uma das cenas mais emocionantes do longa, o protagonista lhe mostra fotos de seus parentes, tentando reviver suas memórias, agora tão difíceis de serem acessadas por causa da doença, do tempo e do isolamento.

    Uma das coisas que mais me faz temer a velhice é a proximidade eminente da morte, já que (em minha crença) o ser humano está fadado a um tempo limitado em sua existência de células que se deterioram a cada dia. O Espião não tem como fugir do assunto. Em tão pouco tempo de inserção naquele espaço, o protagonista precisa vivenciar a experiência da morte, a mesma da qual ele tentou fugir ao aceitar o emprego. Eu, em meus 20 anos, sou impossibilitado de sentir um acontecimento como esse da mesma forma que aquelas pessoas com idade avançada, mas imaginar já é uma tarefa torturante.

    Em seu relatório final para o detetive, Sergio chega à conclusão de que o único crime que está sendo cometido contra a idosa que era alvo da investigação não parte de dentro da casa de repouso, mas da própria filha que está financiando a investigação. Ele chega a perguntar como ela diz estar tão preocupada com a mãe e não veio nem mesmo visitá-la em todo esse tempo em que esteve lá. Assim, o filme mostra que uma pessoa idosa possui vida própria, mas questiona se a melhor maneira de a aproveitar é em uma instituição como aquela, longe de suas famílias e amigos.

    O CRÍTICO ENQUANTO ESPECTADOR

    Mesmo estudando e escrevendo sobre Cinema, nunca acreditei que um filme pudesse (e devesse) ser avaliado apenas a partir de um ponto de vista objetivo. Por este mesmo motivo, sempre fiz questão de me incluir nos textos, raramente escritos em 3ª pessoa, pois acredito que estes são resultado de minha experiência particular com cada obra abordada, sendo praticamente impossível que minhas vivências e meus referenciais sejam excluídos da equação que resulta em meu pensamento final (embora não exista um final, já que um filme pode ser ressignificado com o passar do tempo).

    Roger Ebert costumava dizer: "um homem vai ao cinema e o crítico deve reconhecer que é aquele homem". Ou seja, por mais que o crítico de arte deva desempenhar seu papel, ele precisa reconhecer-se um ser humano como qualquer outro, que entra em uma sala de cinema e assiste a um filme, podendo este provocar-lhe as mais diversas sensações. E, por mais que a obra apresente problemas, o efeito causado no crítico deve ser levado em conta ao avaliá-la.

    O Espião pode não ser um filme perfeito, mas foi capaz de despertar sentimentos complexos em mim enquanto o assistia. O envelhecimento sempre foi um tema muito complicado para mim, talvez pelo fato de ter crescido bastante ligado a minha avó e tê-la visto em situações tão complicadas ao longo dos anos. Minha visão sobre este documentário não é completamente objetiva, mas sim o resultado de minhas experiências pessoais sobre o assunto, o que torna este texto tão pessoal e especial.   

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