Mangrove (2020)

 



MANGROVE

Direção: Steve McQueen

Ano: 2020

País de origem: Reino Unido

    Texto escrito por Matheus C. Fontes

    Mesmo com o cancelamento do Festival de Cannes deste ano por causa da pandemia do vírus Covid-19, os organizadores decidiram anunciar os filmes que integrariam a seleção oficial do evento, garantindo seu prestigiado selo para as produções. Logo no início da coletiva de imprensa em abril, a comunidade cinematográfica espantou-se ao perceber a presença de dois títulos dirigidos pelo diretor britânico, vencedor do Oscar por 12 Anos de Escravidão, Steve McQueen. Em seguida, foi revelado que eles faziam parte de uma série antológica dedicada à cultura negra no Reino Unido entre as décadas de 1960 e 1980.

    O primeiro título da série é Mangrove, um longa-metragem com 124 minutos de projeção, que abriu oficialmente o Festival de Cinema de Londres ontem (07). Aqui, acompanhamos a história real do processo judicial que ficou conhecido como Mangrove 9. Frank Critchlow era o proprietário do restaurante que nomeia o projeto, despertando a fúria de policiais que não suportavam o fato de pessoas negras possuírem o próprio estabelecimento comercial. O local também passou a servir como ponto de encontro do movimento Pantera Negra sediado na capital britânica, sob liderança de Altheia Jones-Lecointe, assim como do ativista Darcus Howe, atraindo mais ainda a atenção dos racistas.

    O restaurante Mangrove é mostrado na primeira metade do filme como um verdadeiro centro cultural para a comunidade negra do bairro Notting Hill, em Londres. Um estabelecimento cujo público não tinha acesso livre a locais de maior prestígio, concentrando uma enorme efervescência cultural que proporciona cenas belíssimas ao filme, como o momento em que as pessoas tomam a rua para cantar e dançar músicas de matriz africana, reafirmando as origens daquele povo.

    Mas esta celebração cultural enfrenta um problema: o racismo. A força policial londrina invade diversas vezes o restaurante, destrói a propriedade e violenta funcionários e clientes, utilizando a desculpa de que o antigo estabelecimento de Critchlow era utilizado para a prática de atividades ilegais. O sistema que deveria readmitir ex-criminosos à sociedade é o mesmo que não consegue proteger seus cidadãos da corrupção daqueles que deveriam garantir o cumprimento da lei. A cor da pele já traz preconceitos que são afirmados verbalmente pelo policial Pc Krank Pulley mais à frente, enquadrando pessoas negras como sujeitas ao crime e à prostituição.

    Steve McQueen e o diretor de fotografia Shabier Kirchner mantêm a câmera em movimentos muito bem pensados, auxiliando a narrativa com decisões estratégicas. Como na cena do protesto, na qual o espectador é colocado no meio do caos, fazendo-se sentir toda angústia e violência infligidas pela força policial. A câmera na mão transforma o público em parte integrante do movimento, utilizando o recurso como uma maneira de criar empatia por aquelas pessoas.

    A segunda metade da projeção é totalmente focada no julgamento, estabelecendo uma linha narrativa mais óbvia. No entanto, o roteiro de McQueen e Alastair Siddons ainda é capaz de conferir originalidade ao desviar de um dos maiores erros cometidos por produções como essa. A figura do "salvador branco" poderia muito bem ser encarnada pelo advogado Ian McDonald, mas o caminho tomado é outro. Os negros são protagonistas de sua própria história aqui, o que é representado pelo fato de eles serem seus próprios representantes no tribunal, tirando os momentos de maior carga dramática dos advogados brancos e mantendo o foco neles.

    O elenco está homogêneo em suas excelentes atuações, mas o destaque fica com dois nomes. Letitia Wright, após ser alçada ao estrelato pelo filme Marvel Pantera Negra, encara o desafio de interpretar uma líder do próprio movimento Pantera Negra, entregando toda a força e dramaticidade exigidas pelo papel. E Shaun Parkes encarna Critchlow em uma atuação fantástica, onde o peso de ser uma pessoa negra em uma sociedade altamente racista é refletido em suas expressões e atitudes, chegando ao extremo em uma cena angustiante dentro de uma solitária. Inclusive, neste momento, a proporção da imagem é utilizada como referência a um fato mostrado anteriormente no julgamento, construindo uma inteligente metáfora visual.

    Talvez a narrativa mais previsível da segunda metade e a falta de um caráter mais humano e profundo para os personagens enfraqueçam parcialmente o projeto. Mas este carrega uma discussão tão importante hoje quanto na época, demonstrando como, após 50 anos, fomos incapazes de avançar no combate ao racismo e o sistema continua a destilar ódio e preconceito a quem não detém o poder. Os poderosos podem ainda querer conhecer a comunidade negra olhando por uma pequena brecha à distância, mas obras de arte como Mangrove estão aí para quem quiser entender mais a luta desse povo, massacrado por séculos sob um sistema branco.

FESTIVAL DE CINEMA DE LONDRES 2020

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