Selfie (2019)


 SELFIE

Direção: Agostino Ferrente

Ano: 2019

País de origem: França/Itália

    Texto escrito por Matheus C. Fontes

    Considero o Cinema como a forma de arte mais complexa exatamente por ser capaz de englobar outras expressões artísticas: música, literatura, arquitetura, pintura, além de possuir uma linguagem própria com recursos bem particulares. O documentário sempre foi bem mais propenso a experimentar do que os filmes com narrativas ficcionais. Eduardo Coutinho foi um mestre deste modelo de Cinema que está em constante evolução, oferecendo ao público experiências memoráveis, como em "Jogo de Cena" (2007), onde ele colocou à prova o ato de atuar e a própria montagem cinematográfica.

    No documentário Selfie (2019), o diretor italiano Agostino Ferrente brinca mais uma vez com o gênero ao entregar o controle das gravações a dois garotos de 16 anos, moradores do subúrbio de Nápoles, na Itália. Alessandro Antonelli e Pietro Orlando são encarregados de filmar com seus celulares, em modo selfie, suas vidas. Por que esses jovens? Por que esse lugar?

    Ao tomar conhecimento de um caso de violência policial, ocorrido nesse bairro, que resultou na morte do jovem Davide por ter sido confundido com um bandido, o diretor decidiu mostrar essa história ao mundo. Durante o filme, somos apresentados a algumas reportagens que cobriram o caso. Estas são apenas a visão de pessoas privilegiadas que não conhecem aquele lugar, aquelas pessoas, aquele jovem assassinado. Por isso, Agostino Ferrente entendeu que precisa da visão de Davide sobre os fatos, então a melhor opção é encontrar alguém que veja o mundo com uma perspectiva parecida com a dele. O diretor faz audições com jovens que moram no bairro e chega aos nossos dois personagens principais. Eles estão sempre em cena, sendo parte daquela realidade, diferente de um diretor que está por trás das câmeras por ser alheio ao que está sendo narrado. Interessante notar o efeito que isso causa quando montagem inclui câmeras de segurança - a visão distante de quem analisou as gravações do dia da morte de Davide não é a que nos é apresentada durante a maior parte do documentário.

    Nós somos apresentados àquela realidade por quem cresceu ali. Passamos a entender como o sistema impede que essas pessoas consigam sair desse ciclo de pobreza e falta de oportunidades. As crianças brincam com armas desde muito pequenas, entendem como o tráfico funciona e consideram aquilo o "normal". É muito fácil qualquer um, assim como eu, julgar alguém que acaba preso por traficar drogas, mas nós não sabemos como é viver naquelas condições. O sistema educacional é colocado contra esses jovens. Alessandro em certo momento relata como se dedicou para estudar e a professora o reprovou. Não estou dizendo que todo professor deva dar nota para seus alunos passarem de ano, mas diante daquelas circunstâncias, onde há uma enorme taxa de evasão escolar, não há como aplicar os mesmos parâmetros das escolas de áreas abastadas.

    Outro ponto abordado é a impossibilidade de sair daquele bairro para regiões mais seguras, pois estas são altamente valorizadas no mercado imobiliário, dificultando que alguém com baixa renda mude-se para lá. Nas audições feitas com os jovens, a grande maioria diz que não gosta de morar naquele local. Mas o sistema não lhes oferece educação, então eles não têm oportunidade de trabalhar em um emprego bem remunerado, fazendo com que muitos caiam nas redes do tráfico para sobreviver e sustentar a família.

    Não me sinto confortável de tratar qualquer um que apareça diante de uma câmera apenas como uma pessoa. Eles são personagens. E é exatamente essa a discussão proposta pelo(s) cineasta(s) que mais me chamou atenção durante o filme. Há uma desconstrução do ato de fazer cinema diante dos olhos de quem está assistindo. Em vários momentos, os dois jovens verbalizam e discutem suas decisões criativas. Pietro fala para os amigos que ele e Alessandro possuem abordagens diferentes para o filme. Mais adiante, Alessandro discute com Pietro por ele ter filmado jovens com armas e discordam sobre o que deve ou não ser mostrado no documentário. Na visão de Pietro, o cineasta deve mostrar o lado positivo e o negativo, sem esconder nada do público. Em outra cena, Alessandro conversa com umas crianças e diz que se não gostar delas, irá cortá-las na edição.

    São esses momentos em que o Cinema está sendo discutido por jovens que cresceram naquelas condições já apresentadas que fazem o documentário brilhar e até mesmo me emocionar. Somos transportados para uma realidade alheia, mas mostrada com tanto afeto pelos dois jovens que fica quase impossível permanecer impassível diante de suas vidas. Isso é empatia em forma de filme.

8 1/2 FESTA DO CINEMA ITALIANO 2020

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