Entre Mortes (2020)



ENTRE MORTES

Direção: Hilal Baydarov

Ano: 2020

País de origem: Azerbaijão/México/EUA

Título original: Sepelenmis Ölümler Arasinda

    Texto escrito por Matheus C. Fontes

    Embora muitos encarem o Cinema hoje apenas como entretenimento, ele possui a capacidade de ser muito mais quando está nas mãos de bons realizadores. Terrence Malick usa seus filmes para construir sua própria obra de filosofia, construindo e desconstruindo conceitos sobre vida, fé e condição humana. Werner Herzog, através de seus trabalhos, discute a respeito da força e da inevitabilidade da Natureza sobre a Humanidade. Andrei Tarkovsky escreveu e dirigiu filmes que sustentavam sua teoria de "esculpir o tempo", transmitindo e alterando a perspectiva humana de tempo. O Cinema pode ser entretenimento, mas é muito mais aos olhos de quem o enxerga como Arte.

    E é exatamente assim que o diretor azerbaijano Hilal Baydarov enxerga-o neste seu último trabalho In Between Dying, que teve sua estreia mundial este mês no Festival de Veneza e agora chega no Festival de Toronto. Aqui, o jovem Davud vive com sua mãe doente e, após um certo acontecimento, precisa fugir e encarar a estrada na zona rural do país, enquanto vários encontros inusitados acontecem. Mas um fator está presente em todos: a Morte, que parece acompanhar o protagonista para onde quer que ele vá. Enquanto isso, três homens o perseguem e acabam testemunhando as consequências desses encontros. No entanto, diferente do que se espera, o que os perseguidores encontram não é apenas a Morte, mas o que provém dela: o Amor.

    Alerta de spoilers!

    Davud conhece algumas mulheres ao longo de sua viagem. A primeira é uma jovem que havia sido acorrentada pelo pai por anos até que, há dez dias, um cachorro a mordeu e ela contraiu raiva. A segunda é uma mulher casada que ficava à beira da estrada observando o vai e vem dos veículos, enquanto a terceira é uma noiva com seu vestido branco, que está fugindo do irmão que a obrigou a casar contra sua vontade. Até que chegamos à última, da qual nunca vemos nada além de seus olhos.

    Este é um daqueles filmes sobre o qual tenho muita dificuldade em escrever, já que é muito mais sobre as sensações que ele desperta no espectador do que qualquer outra coisa, embora possua uma linha narrativa bem definida. Assim como qualquer outra obra de Arte, está aberto à interpretação de quem o contempla, mas, ao colocar tantas figuras enigmáticas e metafóricas em uma história que é também metafórica, o significado de cada elemento apresentado é posto em dúvida pelo espectador. Por isso, este meu texto tem o propósito de apresentar minha visão sobre a obra, sem qualquer pretensão de apresentar um significado absoluto, o que tiraria a liberdade de cada um interpretar.

    O que nos é apresentado nada mais é do que um road movie, conferindo a propriedade de inserir e retirar personagens e subtramas de maneira orgânica ao longo da projeção, embora essa lógica seja modificada aqui. O filme abre com um breve texto que fala de uma pessoa diante de várias portas e há alguém atrás de cada uma delas, mas apenas uma está a sua espera. Este é o resumo da motivação de vida do personagem: encontrar sua esposa e seu filho, cujos olhos ele acredita nunca ter encarado, ou seja, encontrar o alguém especial no meio da multidão de seres humanos que ocupam a Terra. Inicialmente, eu pensei que a obra era exatamente sobre isso, mas o diretor puxa o tapete sobre os meus pés e os do próprio Davud ao fim dos 88 minutos de duração.

    In Between Dying não é sobre encontrar o diferente no meio do comum, o especial no meio do simples, o fantástico no meio do natural. Na verdade, é exatamente o oposto. A tese defendida pelo realizador é que o mundo no qual vivemos não é comum nem simples, ele é especial e fantástico, basta que não passemos a vida olhando para a estrada à frente, pois ela terá um fim em algum momento (ou não). O que precisamos mesmo é olhar para o que está ao lado da estrada, pelo que está passando por nós (ou pelo que nós estamos passando), pois é aí que está a verdadeira beleza de nossa existência.

    Baydarov usa o road movie como uma metáfora para uma viagem de Davud em busca do significado da Vida (ou do Amor, como ele fala no terço final do filme). Para isso, a Natureza é utilizada como um personagem tão importante quanto qualquer outro interpretado pelos atores. As paisagens, embora áridas e sempre envoltas em uma neblina espessa, são de uma beleza sem igual, representando a própria Vida, que pode parecer difícil, triste e solitária, ao mesmo tempo em que é linda e estonteante, embora seja difícil de reparar quando não somos capazes de notar a grandeza presente nos pequenos detalhes. Dualidade esta que é muito bem representada pela película na forma como as pessoas encaram os acontecimentos advindos dos encontros. Enquanto Davud vê a Morte, os que ficaram para trás veem Amor. Cada uma das três primeiras mulheres encontra a liberdade (do pai opressor, do marido abusador e de uma vida sem amor) e a primeira chega a declarar que o protagonista "deixou para trás Amor, não Morte".

    Trabalhando mais uma vez com Baydarov, Orkhan Iskandarli interpreta Davud com toda complexidade e confusão interior que o personagem demanda, mantendo a proposta introspectiva presente no filme. Outro destaque do elenco é a atriz Rana Asgarova, que trabalha em vários papéis, incluindo a esposa nunca vista que chama pelo protagonista nas passagens oníricas espalhadas ao longo da projeção. É uma decisão muito inteligente, já que todas as mulheres presentes nos encontros simbolizam a mesma coisa: o meio que a Vida oferece de Davud chegar ao significado de sua jornada. Investindo em planos longos e poucos cortes, a fotografia utiliza a proporção de tela super alongada para enquadrar as belíssimas paisagens (queria muito ter visto isso em uma tela grande de cinema) e mostrar a pequenez do ser humano diante da Natureza. Além disso, com um simples movimento de câmera, um plano que mostrava apenas dois personagens e uma árvore cheia de folhas no meio da névoa, passa a conter também uma árvore seca, em uma metáfora para a dualidade Vida-Morte que permeia toda a história (e o protagonista cai exatamente entre elas, representando seu mergulho rumo ao significado da existência).

    Com uma brilhante trilha sonora de Kanan Rustamli que confere o tom onírico e imersivo da narrativa, o filme acaba se perdendo nas diversas tentativas de se explicar, como se não confiasse na capacidade de interpretação do espectador. Com isso, vários diálogos entre os três perseguidores e algumas das divagações feitas por Davud tornam-se expositivas e desnecessárias, tirando um pouco da força das metáforas apresentadas. Mesmo assim, In Between Dying ainda é uma obra belíssima com discussões poéticas a respeito da natureza humana, cuja mensagem devia ser apreciada por todos. No entanto, a maioria das pessoas só vai descobrir que a beleza da Vida está bem diante de seus olhos quando já for tarde demais.

FESTIVAL INTERNACIONAL DE CINEMA DE TORONTO 2020

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