Piccolo Corpo (2021)

 
 
PICCOLO CORPO
 
Direção: Laura Samani
 
Ano: 2021
 
Países de origem: Itália / França / Eslovênia

    Vozes femininas entoam um tradicional canto católico enquanto os créditos iniciais ainda estão sendo exibidos. Nenhuma imagem, mas o som já imerge o público no lirismo que transpassará toda a projeção de Piccolo Corpo, primeiro longa de ficção da diretora Laura Samani. Quando finalmente conseguimos ver de onde aquela música vem, é quase desnorteadora a beleza da composição visual. Um grupo de mulheres caminha na praia e, ao centro, uma delas está coberta por um véu branco que, quando levantado, revela primeiro a gestação da protagonista e depois seu rosto de linhas concomitantemente fortes e graciosas. Com a mão cortada, ela entra no mar como parte de um ritual para lavar os infortúnios e abençoar a gravidez.

    Quando ocorre um corte após esse longo plano, as belas imagens de tons pastéis são contrastadas com a escuridão noturna da cena do parto, fazendo com que a leveza da sequência de abertura ceda lugar ao terror de perder a filha primogênita, nascida já sem vida. Agata (Celeste Cescutti) fica devastada ao receber a notícia de que não poderá dar um nome à criança, a qual permanecerá para sempre no limbo, segundo as tradições do vilarejo católico de pescadores onde mora. No entanto, ao ouvir que existe uma igreja no meio das montanhas onde natimortos podem ser ressucitados por um único respiro de vida para que possam ser batizados, ela parte numa jornada pela Itália do início do século XX para salvar a alma da filha.
 
    Com a introdução de Lynx (Ondina Quadri) ao percurso de Agata, a dinâmica entre as duas torna-se um dos pontos altos do filme. A jovem aparece de maneira misteriosa, oferecendo-se para guiar a protagonista em seu caminho, mas acaba revelando-se interessada apenas naquilo que pode extrair para interesse próprio. Ela é uma personagem que está sempre sendo usada pelo roteiro para surpreender o público e criar novas camadas em cima do que havia sido apresentado anteriormente. Entretanto, a relação entre ambas não evolui de forma satisfatória para que o final seja sentido como deveria.

    Samani e a diretora de fotografia Mitja Licen demonstram grande cuidado com a construção imagética de um mundo que parece muito realista, mas também não têm medo de adentrar nos elementos fantásticos advindos das crenças das pessoas retratadas na tela. Infelizmente, a decupagem expõe maneirismos muito comuns do atual cinema independente europeu, como o uso constante da câmera na mão e planos mais fechados, uma estratégia utilizada para tornar as produções mais realistas. Isto funciona muitas vezes, inclusive em boa parte do longa, mas também parece desnecessário em sua abundância.

    O ato final guarda momentos de verdadeira potência emocional, reforçados pelas atuações cruas de Cescutti e Quadri. Ao final da jornada, um dos diálogos entre as personagens ressoa muito forte: elas discutem sobre a relevância de se ter um nome, de ser alguém, de ter alguém que se importe com sua existência. Um discurso que ganha especial dimensão por uma revelação sobre Lynx, a qual abre novas e interessantes interpretações possíveis para os temas abordados na promissora estreia de Samani.
 
Texto publicado como parte da cobertura do Festival de Cannes 2021
 

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