O Marinheiro das Montanhas (2021)

 

O MARINHEIRO DAS MONTANHAS
 
Direção: Karim Aïnouz
 
Ano: 2021
 
Países de origem: Brasil / França / Alemanha / Argélia

    Já nos créditos iniciais, somos apresentados ao significado de "calentura", uma expressão passada de geração para geração entre marinheiros do mundo inteiro, referindo-se à condição na qual eles acordam no meio da noite, tomados por um impulso febril, e avistam belas paisagens floradas onde, na verdade, estão as ondas do mar. Um conceito que ganha novas dimensões dentro da história contada no novo documentário de Karim Aïnouz, o qual explora justamente a ampliação de signos e significados através da relação construída entre sua própria vida e os dois países que lhe deram origem.

    No começo de O Marinheiro das Montanhas, a câmera do diretor já está em movimento, e assim permanece durante uma jornada em busca de respostas, seja sobre os pais, o relacionamento deles, política, mas principalmente sobre si. Ele embarca rumo à Argélia, país natal do pai, a quem conheceu apenas aos 18 anos de idade. Esta é uma viagem que o realizador desejava ter feito com a mãe, falecida alguns anos antes, embora também constitua presença constante aqui, já que Karim endereça sua narração a ela, como uma carta carregada de memórias, reflexões, descobertas, dores e alegrias.

    O diretor parte dessa exploração de suas origens para também discutir o contexto político da Argélia e do Brasil, que não apenas serviu de fundo para o encontro e separação dos pais, mas que desencadeou tudo isso, inclusive seu nascimento. O filme não olha a história apenas como fatos isolados no passado, e sim como parte de uma rede de eventos que desencadearam o presente e que gerarão o futuro. É nessa perspectiva que a produção firma-se como parte do cinema brasileiro, sem medo de encarar a política como fator humano, diferente de boa parte das produções norte-americanas, que resistem em abordar tais aspectos de forma tão frontal.
 
    No entanto, diferente de Nardjes A., trabalho nascido da mesma viagem e que foi lançado na Berlinale 2020, o foco central não está na política. Karim atravessou o Mar Mediterrâneo e cruzou as estradas argelinas em busca de algo difícil de descrever. Algo é certo: não é o pai, cuja proposta para acompanhá-lo durante o tempo no país foi rejeitada. Não é fácil entender o porquê daquele ímpeto de conhecer a terra na qual seu progenitor nasceu e foi criado. Ao chegar na cidade costeira onde desembarcou e passar pela imigração, o diretor relata que foi a primeira vez na vida em que não precisou soletrar o próprio nome. Em outro momento, vai no barbeiro para conseguir um corte de cabelo tradicional da região, com objetivo de fazer com que as pessoas não percebam que ele é estrangeiro. Talvez seja esse desejo de pertencimento o que ele tanto procurava, e a partir disto, visualizar como teria sido viver ao avesso: crescer na Argélia, ao invés do Brasil.
 
    O que faz o documentário ser tão bom, em última instância, é a sensibilidade e a vulnerabilidade apresentadas. Quando ele encontra um homem vesgo durante a visita a um bar, seus pensamentos (e a narração) correm imediatamente para a lembrança da vez em que sua mãe o levou ao oftalmologista. Questionada sobre a herança genética da parte paterna, ela não soube responder ao médico. O realizador explora a ideia de crescer sem conhecer metade de si, a metade que ficou do outro lado do Atlântico, separada inicialmente por questões políticas, mas que permaneceu separada por escolha. É necessária muita coragem para se entregar dessa forma para o público, sem receio de fazer um filme-terapia como este.
 
    Carregando grande influência do belíssimo Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (do qual foi co-diretor ao lado de Marcelo Gomes), a obra abraça o experimentalismo proporcionado pelo documentário, tanto em relação à proposta narrativa quanto à própria forma. Embora apresente momentos que ressaltem uma falta de acabamento (provavelmente pela falta de tempo antes da estreia em Cannes), a montagem consegue destacar visualmente a tempestade de emoções que transpassam o diretor nessa jornada, cortando constantemente entre as lindas filmagens feitas por Karim e imagens de arquivo. Durante esta brincadeira, o filme opta por utilizar as cores primárias para simbolizar o Brasil assolado pela ditadura militar e que viu sua mãe retornar grávida (vermelho), a Argélia pós-revolucionária pela qual o pai lutou (verde) e o mar que concomitantemente os conecta e separa (azul). A mixagem de som também é muito inteligente ao focar em apenas um elemento sonoro em algumas cenas, um recurso simples, porém eficaz para mostrar a mente vagante por trás da câmera.
 
    Durante o percurso até o vilarejo onde sua família paterna se firmou, o diretor encontra fotos antigas da região, tiradas por um artista francês. Ele comenta que as imagens apenas ressaltam um lado estereotipado dos argelinos, uma visão colonizadora na qual os nativos são colocados como selvagens. Karim faz seu documentário de forma inversa, dando voz àquelas pessoas, incluindo muitos jovens que sonham em sair do país. Em outro momento, uma senhora idosa pede que ele faça aquele lugar parecer bonito. A verdade é que ele não precisa procurar a beleza, pois ela está em cada rosto e em cada paisagem daquela terra, um lugar marcado por seu passado colonial. Sendo o autor fruto também dessas relações imperialistas, não há outra opção a não ser encontrar suas histórias interligadas, finalmente dando imagem e som aos fantasmas que o perseguiram por toda a vida.

Texto publicado como parte da cobertura do Festival de Cannes 2021

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