In Front of Your Face (2021)

 

 IN FRONT OF YOUR FACE

Direção: Hong Sang-soo

Ano: 2021

País de origem: Coreia do Sul

    Se existe um cineasta que se consolidou como paixão da cinefilia (especialmente a brasileira) na última década, este foi o coreano Hong Sang-soo. Seus roteiros verborrágicos e estilo de direção bem característico desafiaram a ideia do que é necessário para alcançar complexidade no cinema. Ele retira qualquer aparato que fuja da simplicidade, inclusive a celuloide, assumindo direção, fotografia, roteiro, trilha sonora e produção, e mesmo assim alcança um incrível nível de sofisticação. Outra característica que o tornou tão celebrado foi a sutileza com a qual manipula a estrutura de suas narrativas, além da naturalidade utilizada para saltar entre realidade e sonho. É verdade que seus trabalhos não encantam a todos, mas aqueles que já seguem a carreira dele vão encontrar um dos pontos altos dessa extensa filmografia em In Front of Your Face.
 
    Na história, Sangok (Lee Hyeyoung) volta à Coreia do Sul anos depois de partir para os Estados Unidos. Agora uma mulher já madura, precisa reconectar-se com a irmã Jeongok (Cho Yunhee), que constantemente relembra que elas não sabem "quase nada sobre a outra". O motivo dessa viagem repentina permanece um mistério inicialmente, embora aparentemente seria por causa de um encontro com o diretor Jaewon (Kwon Hae-hyo), com o objetivo de discutir a proposta feita para atuar em seu próximo filme. Uma sinopse que não carrega grandes acontecimentos, algo já esperado por quem está familiarizado com o diretor, mas que ganha uma magia muito especial ao longo dos 85 minutos, graças à maestria de seu autor.

    Em meio a tanta simplicidade formal, cada elemento ganha um grande peso na experiência do espectador, e é exatamente o que acontece com o voice over presente numa das primeiras cenas e que reaparece em algumas ocasiões. A narração restringe-se aos pensamentos da protagonista, principalmente suas orações a alguma identidade divina. Ela agradece por estar vivendo aqueles momentos e diz que tudo o que ficou para trás é "graça", ressaltando sua vontade em viver completamente no presente. No entanto, aparecem em seu caminho várias barreiras para seu objetivo de vida, seja carregando o peso do passado ou tentando refletir sobre o futuro.
 
    Essa resistência de Sangok em olhar para trás ou para frente fica bem evidente em várias sequências, como na cena em que uma mulher pergunta se ela é a atriz que trabalhou na televisão coreana no início dos anos 1990 (fato que ressoa na vida real de Lee), deixando-a visivelmente desconfortável. Logo em seguida, muda o assunto para uma abelha no meio das flores do parque, tentando fazer com que a irmã não volte ao assunto. O passado aparece ainda mais forte quando a personagem decide visitar a casa onde morou na infância, local agora transformado em loja (a modernização de Seul é também um subtexto presente), mas o qual guarda memórias muito fortes. Estas não são simplesmente expostas num diálogo ou em flashback, são sentidas no olhar e nos gestos da protagonista, além de um "abraço em seu eu mais jovem", um dos momentos mais lindos em todos os 26 filmes do diretor.
 
    O futuro é outro fantasma que a atormenta sem qualquer trégua. Jeongok questiona se ela não pensa em voltar a morar na Coreia e começa a falar sobre compra de apartamento na região. Os preços, entretanto, chocam a protagonista, que não possui um poupança grande o suficiente, o que ela tenta justificar pelo fato de as pessoas nos EUA (onde é mais comum pagar aluguel do que ter um imóvel próprio) pensarem mais em viver um dia de cada vez. Não é por acaso que ela tem medo de altura: os altos prédios que povoam progressivamente mais a paisagem da cidade são símbolo do futuro urbano.

    Sendo assim, é perceptível o cuidado de Sang-soo com sua mise-en-scène, a qual interliga a história da personagem central com os espaços de Seul. O passado tem sua representação máxima na antiga residência, local marcado pelas marcas do tempo e concomitantemente influenciado pelo processo de gentrificação (passou de casa para estabelecimento comercial). O futuro, que tanto a espanta, está estampado nos grandes edifícios que lhe causam vertigem. A mesma reação é provocada por pontes, por isso um dos maiores momentos de paz durante o longa ocorre quando a protagonista fuma debaixo da passarela que cruza um córrego. Quando Sangok conta a verdade sobre si, uma revelação que faz com que o público repense todo o filme, ela está num restaurante/café, lugar do qual as pessoas vem e vão, marca do presente.

    Diferente da maioria de seus trabalhos, aqui o realizador abandona suas experimentações em termos de estrutura e opta por uma narrativa linear, decisão que pode ser vista como reflexo da decisão da protagonista em viver o presente, mas também guarda uma complexidade dentro da filmografia do Sang-soo, sempre muito interessado nos sonhos. Jeongok fala para a irmã, no início, que teve um sonho especial, sobre o qual não pode contar nada por medo de que aquilo não se realize. É essa negativa em expor o que a personagem viu enquanto estava dormindo que mantém a cronologia linear. Uma negativa que a narrativa também faz ao próprio estilo de seu diretor, fazendo com que o abandono das estruturas mais rebuscadas de seus longas anteriores revele-se, na verdade, como mais um passo de complexidade.

    O elenco, composto por alguns nomes habituais no cinema do Sang-soo, traz Hyeyoung como seu grande destaque, incorporando brilhantemente uma das personagens mais intrigantes de sua obra, algo comparado à desenvoltura de Kim Min-hee em Na Praia à Noite Sozinha. A atriz passa por uma jornada de 24 horas de autodescoberta, tentando viver cada momento e sendo perseguida pelo passado e pelo futuro. Quando a incrível sequência final remete visualmente às sequências iniciais, Sangok já é outra pessoa inteiramente diferente, a qual possui uma única alternativa: rir. Mas ela ri não de desespero, e sim de completude; ri de Jaewon, preso a uma estrutura familiar já falida, e de Jeongok, presa aos sonhos do que pode acontecer futuramente. A protagonista ri daqueles que não conseguem viver aqui e agora, que são incapazes de encontrar a liberdade do presente.

Texto publicado como parte da cobertura do Festival de Cannes 2021

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