Medusa (2021)

 

MEDUSA
 
Direção: Anita Rocha da Silveira

Ano: 2021

País de origem: Brasil

    Enquanto o olhar provocante de uma dançarina penetra o espectador, a câmera gira e coloca o mundo de cabeça para baixo (na verdade, revela que o mundo já está de cabeça para baixo). Esta sequência inicial de Medusa é capaz de revelar muito sobre o que virá pela frente. O corpo expressa, através da dança, toda a esquisitice que permeia o filme, enquanto as luzes neon destacam a identidade visual da diretora e os excessos da própria narrativa, interessada em utilizar o tom satírico e o gênero de horror para fazer sua crítica social.
 
    Mariana (Mari Oliveira) deixou a família no interior para ir atrás de melhores oportunidades na cidade grande, onde integra o grupo de fiéis de uma igreja evangélica neopentecostal. Essas congregações aumentaram exorbitantemente em número durante a última década no Brasil, período que coincide com a ascensão da extrema direita ao poder político do país. Um cenário propício para imaginar a propagação de uma onda de ódio a partir de crenças religiosas, mas Anita Rocha da Silveira leva isso ao extremo, o qual infelizmente não parece tão distópico se você acompanha as notícias nacionais.

    A protagonista integra um grupo de meninas justiceiras, que saem mascaradas à noite para perseguir mulheres consideradas impuras, agredi-las e fazer com que se convertam à "palavra de Deus". Instigada pela melhor amiga (Lara Tremouroux), ela assume a missão de infiltrar-se na casa de repouso onde supostamente encontra-se uma celebridade que sofreu um acidente no passado. A verdade é que esta mulher foi queimada por alguém que dizia defender os valores cristãos, um ato que deu origem ao movimento das garotas mascaradas. Dentro do serviço de saúde, Mariana inicia seu processo de despertar como pessoa e, em especial, como mulher.

    Para aqueles já familiarizados com o trabalho de Anita em seu longa anterior, Mate-me Por Favor (2015), é possível notar certa similaridade entre as cenas na congregação protestante e o tom predominante neste novo filme. Enquanto anteriormente a maneira quase caricata aplicada ao ambiente religioso destoava da mistura de realismo e horror alcançado fora dali, aqui a direção assume plenamente essa abordagem durante a maior parte do tempo. Isto causa um efeito paradoxal: ao mesmo tempo que faz sentido retratar essas pessoas como os palhaços que são, também parece que falta refinamento na visão satírica com a qual são mostrados, sempre no limite entre a sátira e a caricatura.

    O maior problema do filme talvez seja exatamente os excessos de seu conteúdo. Tematicamente, tenta abraçar o mundo com as mãos, tratando da intolerância propagada por cristãos fundamentalistas, com foco na opressão imposta às mulheres (a diretora é esperta ao colocar outras mulheres como propagadoras desse ódio), além de jogar pequenos comentários sobre homofobia, pressão estética e envolvimento de líderes religiosos com política pública. É nessas tentativas de fazer tantos comentários sociais que o roteiro acaba perdendo foco por alguns momentos.
 
    No entanto, nada disso é capaz de apagar a feracidade com a qual Anita ataca a repressão que tais grupos impõem aos corpos que fogem de seus ideais religiosos, além de tratar com tanta sensibilidade o arco de sua personagem central. A diretora ainda demonstra um excelente domínio técnico na deslumbrante fotografia, cujo controle formal a diferencia de grande parte das atuais produções brasileiras (não que estas sejam piores por causa disso, apenas diferentes), e na montagem, que dosa bem a inserção de sequências mais surreais. Medusa, exibido em Cannes na Quinzena dos Realizadores, é mais um exemplo de como somos capazes de produzir obras de gênero com qualidade, sem nunca perder a essência política do cinema brasileiro.
 
Texto publicado como parte da cobertura do Festival de Cannes 2021

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Capitu e o Capítulo (2021)

Mangrove (2020)

Oscar 2022: Apostas para as Nomeações