Faya Dayi (2021)

 
 
FAYA DAYI
 
Direção: Jessica Beshir
 
Ano: 2021
 
Países de origem: Etiópia/EUA/Catar

    Uma antiga lenda sufista descreve a história de Azuekherlaini, um homem que recebeu de Deus a missão de encontrar a "água da vida vida eterna", chamada de Maoul Hayat. Ele convida dois companheiros para segui-lo nessa busca, mas acabam chegando ao local separadamente. O primeiro a beber da água quer suas graças para todo o mundo, sendo transformado na luz do dia. O segundo não encontra mais o líquido em sua forma pura, mas bebe mesmo assim, com o propósito de beneficiar a todos, embora esteja pensando em si. Ele é transformado na escuridão da noite. Já o terceiro, pensando apenas em si, não encontra mais nada, pois a água já havia secado. Ele intercede a Deus e é atendido: brota o khat, uma planta cujas folhas têm propriedades psicoativas, fazendo com que todos que a mastiguem lembrem da solidão deste último homem.
 
    A diretora Jessica Beshir utiliza brilhantemente este tradicional mito ao longo deste híbrido de ficção e documentário, ressaltando fatores históricos, culturais e individuais que cercam o consumo da tal planta. Através de uma montagem não-linear e quase experimental, ela interliga a vida de diversos habitantes da região de Hatar, na Etiópia, onde o khat tornou-se o principal produto comercial nas últimas décadas. Em um dos primeiros diálogos do filme, um agricultor fala como o café que eles produziam no passado era bom, mas explica que, aos poucos, os campos de teff, café e sorgo foram cedendo lugar para a monocultura que agora domina suas terras. De fato, como podemos observar nas primeiras cenas, a utilização primária do produto é cultural, sendo usado em rituais religiosos.
 
    Através das 2 horas de filme, o espectador é apresentado para uma gama de histórias que acabam convergindo na melancolia que a direção imprime. A fotografia em preto e branco tem parte fundamental nessa construção tonal, principalmente aliada ao trabalho dos montadores Jeanne Applegate e Dustin Waldman, responsáveis pela união do lindo mosaico humano e espiritual que é apresentado. Dentre todos os personagens, a direção parece utilizar Mohammed, um jovem de 14 anos, como condutor dessa jornada pelos conflitos humanos e políticos do país.
 
    Ele não nos é mostrado inicialmente sozinho, mas ao lado de um amigo mais velho que acabou de voltar para a região, após ter partido em direção a uma vida diferente na Europa. Nosso protagonista pergunta a razão pela qual ele retornou, e ele responde: "pela minha mãe". Um diálogo que atinge uma intensidade muito maior quando os pensamentos de Mohammed são manifestados através da narração, em um trecho expositivo sobre o abandono materno sofrido ainda quando era bem pequeno. Sua mãe emigrou e o deixou com o pai, agora dependente de khat.
 
    Nas mãos do cinema comercial, essa história poderia ser trabalhada em um drama comum, como qualquer outro que é lançado semana após semana. Felizmente, este não é o caso de Beshir, um nome ao qual todos deveriam prestar muita atenção. Unindo o melhor do documentário com uma grande influência do cinema arthouse europeu, ela constrói sequências capazes de desenvolver seus temas e personagens apenas através da imagem. Por exemplo, o protagonista constantemente é visto dentro de um prédio onde primeiro abre as janelas e admira a vastidão do mundo além daqueles muros. Ele quer sair daquele lugar que o aprisiona e o faz sentir tão solitário. O garoto logo vai se frustrar e perceber que não há saída, o sistema vai sempre empurrar todos eles para esse isolamento. Por isso, a diretora volta para as mesmas imagens dele no prédio, porém, agora fechando cada uma das janelas.
 
    Além de Mohammed, outros personagens são trazidos à tela. Um deles é uma jovem de Hatar cujo interesse amoroso havia fugido e está retornando. Ela reluta em voltar para seus braços, pois ele não é mais o mesmo: está viciado em khat. Outra figura apresentada ao público é um adolescente que precisa trabalhar para sustentar a família depois da morte do pai. O menino aparece no meio de uma das várias sequências que são colocadas pela montagem ao longo do filme para explicar o ciclo da planta que está destruindo a vida da população. Nós acompanhamos desde os campos onde o produto é cultivado, passamos pelas várias etapas de empacotamento (primeiro na vila e depois na cidade) e, por fim, vemos sua comercialização, que ocorre não para fora do país, mas dentro. O longa é eficaz em mostrar como é exatamente a necessidade de sobrevivência através do capital que retroalimenta o vício que destrói a vida de cada um nesse ciclo.
 
    Faya Dayi monta um retrato quase transcendental da Etiópia, partindo de histórias muito particulares para alcançar temáticas universais: solidão, migração, conflitos familiares, individualidade, drogas e opressão política. Para trabalhar tudo isso através da linguagem cinematográfica, Beshir abusa da beleza das paisagens etíopes através da linda fotografia, além de utilizar muito bem seu design de som para criar uma certa atmosfera espiritual, unindo o som natural da região com uma trilha experimental. A obra ainda culmina isso com a sutileza das imagens que são incluídas na montagem, como pássaros que são vistos em suas rotas de migração sazonal, representando o desejo dos personagens em fugir e finalmente sentir-se livres.
 
Texto publicado como parte da cobertura do Festival Internacional de Cinema de Roterdã 2021

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