Em um Bairro de Nova York (2021)

EM UM BAIRRO DE NOVA YORK

Direção: Jon M. Chu

Ano: 2021

País de origem: EUA

Título original: In The Heights

     Depois de uma das maiores crises (se não a maior) da história do cinema e da própria humanidade, é difícil pensar em um filme melhor para marcar a volta massiva às salas de exibição do que Em um Bairro de Nova York. Claro, isso para os países que conseguiram lidar de forma efetiva com a pandemia e já estão retornando gradualmente às suas atividades cotidianas, marcando um otimismo na indústria cinematográfica. Este obviamente não é o caso do Brasil, embora alguns estados estejam em processo de retomada lenta para voltar aos cinemas. No entanto, uma coisa é certa: em uma realidade onde a COVID-19 nunca existiu, este seria um dos maiores sucessos de bilheteria do ano.

    Já na primeira cena do filme, o espectador é jogado em uma praia paradisíaca, feita explicitamente através de efeitos visuais computadorizados (uma decisão inteligente da direção por ressaltar formalmente uma revelação que virá mais adiante), onde quatro crianças latinas perguntam ao dono de uma venda na praia o significado do nome de seu estabelecimento: Sueñito. Qualquer pessoa que pensa durante 5 segundos nessa cena percebe uma certa inverossimilhança. Como uma pessoa latina no meio da América Latina (deduz-se que a cena acontece em algum lugar da República Dominicana) não conhece uma palavra básica do vocabulário espanhol? O filme responde essa questão mais para frente, mas é uma passagem interessante por ressaltar o maior dos problemas presentes: é um filme sobre latinos pensado para norte-americanos.

    O que vemos pelas mais de 2 horas que seguem após essa introdução é trazido através de Usnavi (Anthony Ramos), que atua como narrador da história, com direito até mesmo a "era uma vez". Como qualquer narrativa, suas bases (tempo e espaço) são logo introduzidas: estamos no início do verão na cidade de Nova York, mais especificamente em Washington Heights, o tal bairro do título. Nosso protagonista é exatamente aquele que está contando tudo para as crianças, um jovem cujo pai trabalhava em uma praia dominicana. O público é levado a deduzir que ele faleceu e o filho precisou emigrar para os Estados Unidos, onde foi criado pela matriarca da comunidade, "Abuela" Claudia (Olga Merediz).

    A sequência musical de abertura é talvez o melhor momento do longa. Somos apresentados para quase todos os personagens em apenas uma música, composta pelo criador do musical homônimo da Broadway, Lin-Manuel Miranda, assim como todas as outras que são performadas pelo elenco. Essas canções carregam a assinatura autoral de seu compositor: a mistura inusitada de gêneros pouco tradicionais em obras do tipo, principalmente o rap. Como a história é centrada na cultura latina, é claro que não falta merengue e salsa na festa. No entanto, o propósito não é simplesmente introduzir cada uma das figuras que habitam aquelas ruas, mas também os sonhos carregados por eles.

    No meio da quantidade imensa de personagens trazidos à tela, é perceptível a preocupação com a representatividade de grande parte dos países da América Latina, carregando sempre sua língua-mãe no meio dos diálogos em inglês (às vezes soa apenas como representação de um estereótipo). Dentre tantos, Nina (Leslie Grace) é uma das poucas que consegue se destacar ao lado da performance carismática e magnética de Ramos (que assume o papel originalmente desempenhado por Miranda nos palcos), um nome que será difícil de esquecer quando se falar dos diversos musicais de 2021. No caso de Grace, ela precisa dar à vida uma personagem cheia de nuances (pelo menos para o padrão da obra), dividida entre a pressão de representar sua comunidade em uma universidade de respeito e a vontade de permanecer no local onde sempre foi amada por todos.

    A partir disso, fica perceptível a forma como os criadores decidiram retratar Washington Heights. O bairro é mostrado quase como um paraíso, diferente da vida daqueles que moram ali. A questão é que os problemas quase nunca nascem lá, são sempre trazidos de fora: a gentrificação. Constantemente, as pessoas falam sobre a nova lavanderia da região e os preços absurdos que estão sendo cobrados, assim como o valor do aluguel que continua subindo e tornando impossível alguns deles permanecerem ali, incluindo o salão de beleza, palco de alguns dos momentos mais divertidos do longa. Este é um processo já comum nas cidades de todo o mundo, expulsando as populações menos abastadas para áreas ainda mais periféricas e precárias, enquanto o antigo lar deles é tomado pela burguesia.

    Não é por acaso que um dos mecanismos utilizados pelo roteiro para movimentar a narrativa é justamente um prêmio de loteria vencido por alguém que comprou na bodega de Usnavi, mas que não aparece para resgatar o dinheiro. No capitalismo, só existe uma forma de alcançar seus sonhos: o capital. Pode parecer estranho discutir esses aspectos a partir de um blockbuster, mas política está presente em cada canto do filme (na verdade, de qualquer filme). Por isso, é difícil encarar os problemas que surgem ao longo da projeção. Ao mesmo tempo que se deve admitir a coragem em discutir imigração, gentrificação, neoliberalismo e orgulho latino em uma produção desta escala, também é necessário apontar a forma rasa como tudo isso acaba sendo trabalhado. Por exemplo, há uma cena que se passa no meio de um protesto, cuja existência já é admirável, mas que é retratado de uma forma estéril, quase romantizada, da forma como os estadunidenses gostam de ver a política.

    Parte disso pode ser justificado pelo gênero musical, que tradicionalmente tende a se manter mais romântico do que realista. Essa foi a abordagem que dominou o estilo durante sua época de ouro em Hollywood, entre as décadas de 1930 e 1950, quando atingiram o auge de seu poder comercial, dominando as salas de cinema ao redor do mundo. Depois disso, os musicais pararam de ser produzidos com a mesma frequência frenética por causa da perda de interesse do público, além do desgaste ocasionado pelas convenções estabelecidas. Para que o gênero pudesse novamente alcançar um padrão de qualidade, tornou-se necessário que houvesse uma certa renovação, como aconteceu com Os Guarda-Chuvas do Amor (1964) e Dançando no Escuro (2000). Neste novo filme que chega agora ao público, a renovação acontece primordialmente em aspectos temáticos, sem conseguir trazer um frescor em sua forma.

    Entretanto, é inegável a eficiência da aplicação da tradicional grandiosidade visual de Jon M. Chu, que vem do sucesso de Podres de Ricos (2018) diretamente para essa ode multicultural. Aliado à ótima coreografia de Christopher Scott, são os números musicais que constituem o coração de Em um Bairro de Nova York, o motivo pelo qual o longa consegue transmitir tanta energia. Além da sequência inicial já discutida, vários momentos ganham vida por si só. Da cena que ocorre dentro de uma piscina, passando pela brincadeira com a gravidade e pela mais significativa das sequências, protagonizada com brilhantismo por Merediz. A fotografia de Alice Brooks e a direção de arte ressaltam as cores vivas do verão americano e também de origem cultural, embora acabem prejudicadas parcialmente pelo abundante uso de efeitos computadorizados, principalmente quando a direção opta por planos mais abertos.

    Miranda e Chu transportam a obra dos palcos para as telas sem perder a força do original, mas aliando-se com a linguagem cinematográfica, o que torna possível aquilo que não seria no teatro. Isto amplia aquele universo e expande exponencialmente seu público, antes restrito àqueles que conseguiam ir até Nova York e pagar ingressos caríssimos. Como eu disse no início deste texto, não poderia existir filme melhor para voltarmos às salas de cinema, o que ainda torna mais eficaz seu tom escapista.

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