Capitu e o Capítulo (2021)

 
 CAPITU E O CAPÍTULO

Direção: Júlio Bressane

Ano: 2021

País de origem: Brasil

    Em entrevista concedida ao Festival de Roterdã, onde ocorreu a estreia mundial de sua nova obra, Júlio Bressane falou sobre o título Capitu e o Capítulo, uma ideia que lhe foi dada pelo amigo e poeta Haroldo de Campos. Segundo este, o verdadeiro protagonista de Dom Casmurro não seria nenhum dos personagens, mas o "capítulo". Foi a partir deste diálogo entre eles que surgiu a nova (seria a última?) experimentação audiovisual de um dos diretores vanguardistas mais importantes da história do cinema brasileiro, que continua com o mesmo frescor criativo do início da carreira.

    Não é a primeira vez que ele utiliza um livro de Machado de Assis: em 1985, já havia lançado Brás Cubas, além de ter utilizado mais recentemente alguns contos para a realização de A Erva do Rato (2008). Dessa vez, um dos maiores clássicos da nossa literatura é transportado para a tela, mas não como uma simples adaptação, já que estamos falando de um dos maiores autores do cinema de invenção. A proposta aqui é desconstruir aquilo que foi posto em palavras para gerar algo completamente novo, ao mesmo tempo que resgata temas recorrentes na filmografia de Bressane, embora esteja muito mais ligado ao próprio fazer artístico do que a qualquer outra coisa.

    O princípio básico a ser notado é a maneira como o filme é montado, constantemente intercalando cenas originadas do material-base com monólogos do próprio Machado (Enrique Díaz), enquanto escreve e lê em uma biblioteca de fundo infinito, algo esteticamente parecido com o que foi feito em Sedução da Carne (2018). Esta estruturação narrativa surge a partir do protagonismo do "capítulo", um conceito que, segundo o diretor, levou anos para ser verdadeiramente compreendido. Ele propõe uma relação entre o número imenso de capítulos que estão presentes em Dom Casmurro (e em outras obras de mesma autoria) com as crises epilépticas que acometiam o escritor. Da mesma forma como a patologia interrompia momentos de sua vida, os cortes interrompem a linearidade narrativa.

    Assim como nos outros trabalhos do diretor, descrever a história é praticamente irrelevante, bem como tentar encontrar significados e metáforas em suas imagens. Entretanto, é algo inerente ao ser humano buscar algo que introduza sentido àquilo que vivencia. Sendo assim, embora as sensações provocados pelo filme sejam mais importantes, é interessante realizar a tarefa (individual) de interpretação artística, ainda mais quando o artista propõe uma reflexão sobre o "nada", pois é nisso que se exige verdadeira profundidade.

    No primeiro plano conjunto de Capitu (Mariana Ximenes) e Bentinho (Vladimir Brichta), a moça está desenhando o contorno do rosto do marido na parede, a partir de sua sombra. Um momento crucial para entendermos que não será apresentada a realidade machadiana, mas uma interpretação desta. A falta de preocupação em realizar uma adaptação permite criar uma encenação com autoconsciência, capaz de entender-se e desconstruir-se, como em duas cenas nas quais um dos personagens extrapola o domínio da diegese e encara o absurdo dos elementos cênicos, em especial os outros personagens. A própria existência da câmera é ressaltada pelo longa quando algo é posto entre a lente (o olhar cinematográfico) e a mise-en-scène: um vidro que distorce a imagem, um lenço que Sancha (Djin Sganzerla) põe sobre a lente, além de momentos nos quais os atores são vistos apenas através de seu reflexo num objeto de ferro.

    É intrigante perceber como, nessa desconstrução de linguagem, os elementos formais são utilizados pela direção para ressaltar sua narrativa autoconsciente. Já na sequência inicial, a música sai do extra-diegético e entra em campo, estando agora a sua origem (violinista) enquadrada. O design de produção, que muitas vezes cria espaços com grande influência do teatro, exibe pinturas em todos os cenários como parte intrínseca dessa encenação proposta. Por exemplo, em um único movimento de câmera, passa-se de um quadro com flores pintadas para um jarro de flores reais, destacando mais uma vez a brincadeira com a diegese fílmica.

    Embora essas experimentações estejam presentes em toda a obra e o diretor insista que o filme é sobre "nada", o conteúdo carrega alguns temas que são quase onipresentes em sua filmografia. O principal deles é o impulso homicida do ser humano, colocado quase sempre em estrita conexão com o sexo, algo que fica bem evidente no diálogo entre Bentinho e Sancha, quando ela pede pelo estrangulamento como manifestação de tesão sexual. Outra temática abordada (e extraída do livro) é a paranoia desencadeada pelo ciúme nutrido pelo marido em relação a Capitu e Escobar (Saulo Rodrigues). O processo de enlouquecimento do personagem é tratado brilhantemente pela direção e pelo ator, que incorpora o fator quase teatral do longa (a fuga do realismo é mais um exponente da existência da encenação), ao mesmo tempo que recorre a características do expressionismo alemão, como o uso das sombras para hiperbolizar os sentimentos retratados.

    Além das cenas na casa de Capitu e na biblioteca do Machado de Assis (outra fronteira que é quebrada em certo momento), a montagem de Rodrigo Lima ainda inclui diversos trechos de outros filmes do Bressane, inclusive de seu trabalho mais celebrado, Matou a Família e Foi ao Cinema (1969). Essas imagens são sobrepostas muitas vezes ao que foi mostrado logo antes ou depois, criando uma ligação de sentido com o propósito de expressar sentimentos ou sensações vividas dentro da própria encenação. Isto coloca Capitu e o Capítulo não como um filme isolado, mas como parte da obra para a qual o diretor dedicou sua vida, uma ligação interna necessária para compreender a incrível coesão narrativa de uma carreira com mais de 50 anos.

    No meio dos créditos finais, ainda são inclusos alguns minutos de gravação dos bastidores das filmagens. Esta é a quebra final da encenação de Bressane, quando finalmente não resta qualquer dúvida sobre a farsa aos quais atores e mise-en-scène estão submetidos. Câmera, luzes, equipe e o próprio diretor são enquadrados nesse epílogo autoconsciente, o ato final do longa e também do que parece ser a despedida de um dos nossos maiores artistas do audiovisual. Espero realmente estar errado.

Texto publicado como parte da cobertura do Festival Internacional de Cinema de Roterdã 2021

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