Zeros and Ones (2021)

 
ZEROS AND ONES
 
Direção: Abel Ferrara
 
Ano: 2021
 
País de origem: Alemanha / Reino Unido / EUA

    No início da projeção de Zeros and Ones no Festival de Locarno, aparece um vídeo caseiro de Ethan Hawke, gravado antes do início das filmagens, no qual o ator fala sobre o quanto está empolgado para trabalhar com Abel Ferrara, cujos filmes recentes com Willem Dafoe tanto o inspiraram. Parece ser mais um dos vídeos de introdução que ficaram tão comuns nessa época de festivais online. Porém, ao final dos créditos, Hawke retorna, já depois de assistir ao corte que lhe foi enviado. Dessa vez, ele admite que, quando leu o roteiro, não fazia ideia do que estava acontecendo, uma sensação que a maior parte da público irá compartilhar inicialmente. Estas passagens não foram adicionadas apenas como uma saudação aos espectadores, são parte integrante do longa e podem dizer muito sobre a loucura que ocorre no meio delas.

    Embora este novo trabalho de Ferrara possa aparentar ser bem menos pessoal que seus últimos, os quais se comportavam quase como uma autoanálise, existe uma exploração do subconsciente humano de forma metafórica em cada frame presente aqui. A indicação que estamos contemplando a visão do diretor durante a pandemia fica evidente não apenas nas máscaras e no álcool em gel, mas principalmente na atmosfera caótica em que somos jogados, sendo este um dos melhores retratos de 2020 produzidos até então.

    Quando o agente militar norte-americano JJ (Hawke) desembarca na estação de trem da primeira cena, ele é jogado em uma Roma sob cerco, cujas ruas são habitadas apenas por alguns grupos militares. É meio inútil discutir a história, já que, mesmo ao final da projeção, é difícil entender exatamente o contexto apresentado, senão pelo fato de uma aparente guerra estar em curso. A missão do protagonista é justamente descobrir contra quem eles estão lutando (um inimigo invisível já não é novidade para nenhum de nós), além de encontrar o paradeiro de seu irmão gêmeo, que foi capturado e torturado. Ataques terroristas, espionagem russa, informante sem-teto, traficantes e prostitutas asiáticas. Todos são figuras da anarquia cinematográfica de Ferrara, fruto da crescente paranoia dos nossos tempos.
 
    No meio de todo esse caos, é a brilhante fotografia de Sean Price Williams que redefine tudo que estamos vendo. Se os puritanos da sétima arte acham que o digital é apenas um retrocesso em relação à película, o diretor mostra o quanto eles estão errados e explora as mais diversas possibilidades da tecnologia. Já acostumado com o cinema de guerrilha, Ferrara mergulha no extremo das imagens digitais, não tentando esconder a pixelização em nenhum momento. Pelo contrário, ele aproveita-se disso ao máximo, aparentando até um trabalho mais amador, embora não demore para vermos que existe um verdadeiro autor atrás da câmera.

    O filme cria uma mise-en-scène capaz de refletir a loucura do século XXI como poucas vezes o cinema fez, seja através da câmera na mão sempre inquieta ou simplesmente da utilização do digital. Depois de um ano em que nossas vidas, trabalhos, comunicação e até a arte foram levados para o ambiente virtual, as escolhas formais parecem mais do que apropriadas para retratar a existência humana, cada vez mais fragmentada pelos zeros e uns (código binário utilizado pelos computadores e que se reflete nos irmãos gêmeos do filme) que passaram a ser nossa realidade. Isto reverbera também no fato de JJ sempre carregar uma câmera, a qual junta-se à arma do personagem quase como extensões de si (mais um simbolismo extremamente pessoal do diretor).
 
    Com a trilha de tons sombrios de Joe Delia, o longa ocorre quase completamente à noite, sendo as lâmpadas artificiais da cidade as únicas fontes de luz presentes. Parece que o protagonista está vivendo um pesadelo febril, no qual todos aparentam se voltar contra ele. A montagem utiliza elipses de maneira que desnorteia o espectador: não sabemos se tudo está acontecendo no período de uma noite ou se são várias, criando a sensação de que a luz do sol nunca mais voltará a brilhar. Uma incerteza que o mundo inteiro compartilhou recentemente por causa da pandemia. O medo do desconhecido que deixa mortos em cada esquina.

    Porém, Ferrara termina Zeros and Ones em um tom muito mais otimista do que seus últimos filmes. Mesmo que as explosões de bombas no Vaticano (ele volta à recorrente temática religiosa) pareçam ser a única luz que passará pelo caminho de JJ, quando parece não haver mais esperança para tanta destruição, o sol retorna e anuncia um novo dia. As máscaras caem dos rostos, pessoas compram flores na rua e crianças brincam no parque. Nós sabemos que a noite virá novamente, por isso nos resta apenas aproveitar ao máximo o tempo que temos.

Texto publicado como parte da cobertura do Festival de Locarno 2021

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