Medea (2021)



MEDEA
 
Direção: Alexander Zeldovich
 
Ano: 2021
 
País de origem: Rússia

    Embora muitos já tenham se aventurado por textos seculares para produzir obras audiovisuais, fica cada vez mais evidente que aquilo que realmente importa não é o enredo, mas como ele é contado. Sendo assim, é contraproducente dizer que um determinado filme sofre pelo desgaste de uma história já contada várias vezes, um argumento que muitos poderiam utilizar contra o novo projeto do russo Alexander Zeldovich, o qual recorre ao mito de Medeia. A personagem da Grécia Antiga foi figura central de inúmeras adaptações no teatro, no cinema e na televisão, mas o que foi feito aqui pelo diretor traz um frescor surpreendente, carregando a essência da Arte como um retrato de seu tempo.

    A fotografia de Aleksandr Ilkhovskiy capta as belas imagens de abertura do filme, quase um paraíso idílico, enquanto a personagem-título (Tinatin Dalakishvili) narra sua vida. É exatamente a força da história oral que perturba a perfeição aparente dos primeiros planos, uma dinâmica de desconstrução que permeia todo o longa, algo que fica ainda mais evidente quando descobrimos que a narração é, na verdade, a confissão que Medeia está fazendo em uma igreja. Embora ela tanto insista por uma resposta, nenhuma voz sai de dentro do confessionário, o silêncio dos deuses às preces de uma mulher que tenta defender hipocritamente o valor cristão de família.

     Todas as ações da protagonista parecem ser a favor do pai de seus filhos, que inicialmente a mantém como amante, até que larga a esposa e vai com Medeia e os filhos para Israel (nenhum lugar melhor para discutir religião do que a terra sagrada de Jerusalém). A primeira atualização que Zeldovich parece fazer do texto original é adicionar discussões sociais que dominaram a produção audiovisual recente, principalmente o machismo e a submissão feminina. Esta ideia fica bem clara em diferentes momentos nos quais Alexey (Evgeniy Tsyganov) tenta fazer com que a personagem assuma seu papel de mãe, sendo o ínfimo tempo de tela dos atores mirins nenhuma coincidência, apenas mais uma negação ao padrão imposto a ela como mulher.

     Outra grande força de construção narrativa encontra-se no sexo, expressão máxima da disruptura promovida pela personagem em relação aos valores socialmente aceitos, além de ser a representação da hipocrisia de uma burguesia que prega suas ideias como verdade absoluta (incluindo a condenação da prática sexual como busca de prazer), embora pratique exatamente o oposto. Mesmo que as cenas que envolvam esse elemento sejam bem interessantes, tanto por sua beleza plástica quanto pelo humor que surge da encenação absurda, as diversas ocorrências ao longo dos 139 minutos de projeção soa repetitivo, prejudicando o ritmo do filme e esvaziando a força que as melhores sequências carregam. O mesmo também pode ser dito dos momentos em que há uma tentativa de criar passagens surrealistas, mas que não funcionam e poderiam ter sido cortadas na montagem.

     Num ano em que o Concurso Internacional do Festival de Locarno parece ser integrado por algumas produções de qualidade inferior a edições anteriores, Medea já pode ser considerado um de seus destaques, fruto de uma direção que sabe usar o formalismo para ressaltar o absurdo dos dias de hoje através da mise-en-scène. É a partir de um mito milenar que Zeldovich constrói seu retrato da libertação feminina, auxiliado pela performance impressionante de Dalakishvili e pela trilha de Alexey Retinsky, responsável pela criação da atmosfera de mistério e suspense que permeia todo o filme.

Texto publicado como parte da cobertura do Festival de Locarno 2021

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Capitu e o Capítulo (2021)

Mangrove (2020)

Oscar 2022: Apostas para as Nomeações