Reflection

REFLECTION

Direção: Valentyn Vasyanovych

Ano: 2021

País de origem: Ucrânia

    Depois de ser premiado em 2019 por Atlantis, o diretor ucraniano Valentyn Vasyanovych retorna ao Festival de Veneza, desta vez na Competição Oficial. Reflection segue o cirurgião Serhiy (Roman Lutskyi) numa jornada pelas profundezas da crueldade e do vazio de nossas existências. Não é um fácil de ser assistido, causando reações muito parecidas com aquelas provocadas pelo trabalho de Gaspar Noé, embora formalmente sempre mantenha distância da ação. Ao mesmo tempo que fala sobre barreiras, nos faz testemunhar o lado mais sombrio do ser humano de forma passiva, o que causa um desconforto ainda maior.

    Durante o primeiro ato, o diretor constrói uma mise-en-scène que remete diretamente a ideia construída por Hitchcock, em Janela Indiscreta, de que a tela do cinema é uma proteção do espectador em relação à diegese fílmica. Neste caso, as várias telas que permitem a estabilização de um plano dentro outro parecem simbolizar a barreira que separa o protagonista do mundo, especialmente em relação à guerra de seu país natal com a Rússia. Quando ele finalmente decide encarar o outro lado, o vidro rompe-se violentamente e o expõe para os maiores horrores que já tinha presenciado.

    Em um longo plano sequência, Vasyanovych descarrega toda a abominação da guerra, jogando seu protagonista às tropas inimigas. O personagem é despido e torturado, qualquer resquício de dignidade lhe é extraído de forma brutal. Até a os aprendizados da profissão, que antes eram usados para salvar vidas, agora são reduzidos unicamente à prática de atestar o óbito de seus compatriotas durante longas sessões de tortura. O design de produção e a fotografia abusam de tons mórbidos e da pouca luz do local para externalizar a podridão humana, agora escancarada diante dos olhos do público.

    A comparação que fiz previamente com o argentino Gaspar Noé não é por acaso, em especial quando observamos a mudança de tom entre as duas metades do longa. Enquanto os 60 minutos iniciais mergulham o espectador na pura violência física e em cenas extremamente gráficas, o restante da projeção assume um tom bem mais melancólico, mas que não deixa de ser doloroso em momento algum, principalmente pelo peso do que foi exibido antes. Depois de tanto sofrimento, como acreditar na existência de um deus? Como acreditar na existência da bíblia que guarda em casa? O simbolismo de uma ave que morreu ao chocar-se com a janela do apertamento de Serhiy porque viu o reflexo do céu no vidro é óbvio, mas bastante poderoso pela delicadeza com a qual o filme apresenta-o. O protagonista, então, passa a questionar tudo isso, ao mesmo tempo que tenta reaproximar-se da filha e da ex-esposa.

    A câmera de Vasyanovych mantém-se quase sempre estática e à distância, fazendo-nos testemunhas de tantos atos de crueldade na primeira parte e de tanto trauma e vazio na segunda. Esta distância do nosso ponto de vista (o ponto de vista da câmera) para os personagens pode até criar uma frieza na forma como encaramos o arco do protagonista, mas também reforça o tom melancólico da narrativa, além de criar a diferença com a qual assistimos ao último plano, quando finalmente conseguimos ver encarar os rostos dos personagens. Embora a tentativa de terminar com uma brincadeira metalinguística remeta a grandes trabalhos que realizaram tão bem esta tarefa, como alguns longas do Abbas Kiarostami, o diretor não consegue alcançar a mesma potência com este artifício em sua narrativa.

Texto publicado como parte da cobertura do Festival de Veneza 2021

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