Ahed's Knee

AHED'S KNEE (Ha'berech)

Direção: Nadav Lapid

Ano: 2021

Países de origem: Israel / França / Alemanha

    Embora eu não seja o maior admirador de Sinônimos (2019), longa anterior do israelense Nadav Lapid e vencedor do Urso de Ouro, é quase impossível negar a potência de sua visceralidade, mergulhada numa variação formal do cinema de fluxo e carregada pelas frustrações do diretor. Desde A Professora do Jardim de Infância (2014), ele parece ter se encontrado em narrativas cada vez mais pessoais, passando pela infância, juventude e, finalmente, a vida adulta. O que aparenta ser a conclusão de uma trilogia, Ahed's Knee é o maior feito de Lapid até hoje, seja pelo aperfeiçoamento das tendências formais que havia adotado anteriormente ou pela honestidade com a qual trata seus próprios traumas.

    Se em seu último longa, o protagonista despiu-se completamente ao deixar Israel para tentar negar suas origens e tornar-se francês, aqui o personagem autobiográfico do autor já é um homem maduro, de cabelos grisalhos e consciente de que "a geografia vence". Por mais que ele queira, não há como negar o país onde nasceu e cresceu. Por isso, a única opção que lhe resta é processar todo ódio e frustração na arte, imagens e sons que expressam o mais íntimo tormento que ele carrega dentro de si.

    Y (Avshalom Pollak), diretor de cinema, está à procura da atriz que interpretará a ativista palestina Ahed Tamimi em seu próximo projeto. Após confrontos com a polícia, um político extremista escreveu nas redes sociais que ela deveria ser baleada no joelho, incidente que inspirou o filme dentro filme que vemos aqui. Antes que entendamos exatamente o que está acontecendo, o diretor desnorteia o espectador com composições que só ele ousaria utilizar, começando por postes e prédios de Tel Aviv em contra-plongée que oprimem a câmera, a qual está em movimento (de fuga?), e que são distorcidos pelos pingos de chuva na lente. Desta forma, Lapid não esconde seu aparelho de trabalho, pelo contrário, deixa-o evidente para quem assiste, num jogo metalinguístico que se evidencia em vários momentos. Portanto, a câmera não é apenas observadora, mas agente ativa de comunicação entre a diegese e nossa realidade, entre autor e público.

    Durante uma viagem para exibir um de seus filmes numa remota cidade no deserto israelense, Y conhece Yahalom (Nur Fibak), funcionária do Ministério da Cultura, com quem estabelece uma tensão psicológica e sexual imediata. Ao mesmo tempo que alguns planos unem os rostos de ambos de forma quase desconcertante, outros destacam a mente vagante do protagonista, com a câmera girando pela paisagem árida enquanto eles conversam. Ela diz ser grande apreciadora dos filmes do protagonista, mas trabalha para um governo que tenta censurar seus artistas: um paradoxo que a torna uma personagem extremamente intrigante.

    É a partir dessa dinâmica que o longa consegue alcançar a potência do último ato, quando Y se vê encurralado entre sua luta contra o sistema e seus valores morais. Até que ponto ele irá para combater um governo que segrega, oprime e mata quem é diferente? O ambiente onde cresceu irá influenciar suas decisões? O personagem grita e cuspe todos os horrores que o assombram. Grita para Yahalom. Grita para a câmera. Grita para nós. Quase nos engole na tentativa desesperadora de exorcizar os demônios que nutrem tanto ódio dentro dele. O mesmo ódio que mantém o protagonista num estado concomitante de oprimido e opressor.

    Na viagem, ele filma vários vídeos com o celular endereçados à mãe, que está com câncer (a mãe de Lapid faleceu durante a pós-produção de Sinônimos). Durante estas cenas, a montagem intercala os pontos de vista, cortando da câmera inicialmente observadora da ação para o ponto de vista do celular (cineasta). Porém, para nossa surpresa, esta última também passa a observar o protagonista no mesmo plano: mais uma brincadeira entre as diferentes camadas fílmicas que se sobressaem no filme (dentro filme) e que também são reflexos da realidade fora da diegese.

    Em determinado momento, Y diz que a forma importa mais do que a história em seu filme. Neste novo trabalho, Lapid encontra sua câmera bem menos desnorteada do que em Sinônimos, embora nunca abandone as características visuais que tantos exaltaram anteriormente. Uma das cenas mais bonitas de 2021 é justamente quando o protagonista dança no meio do deserto ao som de Be My Baby, de Vanessa Paradis, enquanto malabarismos formais acompanham o personagem em uma das sequências musicais mais únicas que o cinema recente produziu. Os planos detalhes são outro grande destaque das composições do filme, encontrando beleza ao filmar uma nuca, joelhos e pés.

    Ahed's Knee é o confronto de seu autor diante da morte da liberdade em seu país e diante do luto causado pela morte da mãe. A dor assombra e a revolta consome. Está perdido num vazio tão grande quanto a imensidão do deserto, gritando porque sabe que agora não pode mais escapar e fingir que nasce no lugar errado. O corpo jovem de Tom Mercier dá espaço para a rigidez trazida pelo tempo no corpo de Pollak. Anos de dores vendo seu povo destruir os outros, apagando qualquer diferença humana já nas escolas e massacrando aqueles que não seguem seus preceitos. A dialética entre ser oprimido e oprimir rege uma existência amargurada, em constante necessidade de manifestar suas frustrações. Não é a primeira vez que Lapid faz isso, mas é a mais visceral e dolorosa.

Texto publicado como parte da cobertura do Festival de Cinema Internacional de Toronto 2021

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