The World to Come (2020)



THE WORLD TO COME

Direção: Mona Fastvold

Ano: 2020

País de origem: EUA

    Sabe quando um filme consegue extrair emoções profundas quando você menos espera? Infelizmente não é algo tão frequente para mim. É óbvio que o cinema é uma experiência subjetiva, ou seja, o que me leva a um choro copioso, talvez tenha um impacto mínimo no restante do público. Cada ser humano é único, assim como suas experiências de vida. São elas que determinam o nível de ligação que uma obra de arte irá traçar com uma pessoa. No entanto, um bom artista é capaz de encontrar a universalidade na mais particular das histórias, o que felizmente é o caso aqui.

    No estado de Nova York, durante o século XIX, Abigail (Katherine Waterston) precisa lidar com a perda de sua filha de 4 anos, vítima de difteria, enquanto encara uma vida pacata ao lado do marido Dyer (Casey Affleck). Eles vivem em uma cabana no meio da floresta, rodeados pelas montanhas do vale. Quando vemos o primeiro plano aberto da casa deles, aparenta ser uma daquelas pinturas que fazem tudo transparecer a mais tranquila paz de espírito, mas que escondem a realidade daqueles indivíduos tão pequenos diante do mundo ao seu redor. E a real condição daqueles dois indivíduos é dura de acompanhar, pois eles estão machucados e aprisionados em sua fragilidade, como a narradora declara a respeito do marido: "contentamento é um amigo que ele nunca consegue ver".

    Mas eles não estão sozinhos naquele vale, uma comunidade rural está, aos poucos, estabelecendo-se na região. Em um domingo, ao final da celebração religiosa, Abigail enxerga algo que parece uma miragem no meio daquela paisagem: uma mulher de cabelos ruivos e portadora de uma beleza estonteante. Essa era Tallie (Vanessa Kirby), esposa do também fazendeiro Finney (Christopher Abbott), que estava temporariamente tomando de conta de uma propriedade local. Olhares foram trocados intensamente, despertando algo nelas, quase como um dos milagres dominicais dos evangelhos, dos quais as autoridades tanto reclamavam por desrespeitarem a lei que dizia que nada deveria ser feito aos domingos. Um ato profano de pura beleza.

    Tendo estreado no Festival de Veneza, The World to Come é o segundo longa-metragem da diretora norueguesa Mona Fastvold, que exibe um sensibilidade incrível com suas personagens, construindo as relações entre elas de maneira minuciosa e atenta aos detalhes, tão importantes para as conexões que são (des)construídas aos poucos. É um filme atento aos pequenos gestos cotidianos que vão moldando a vida e a personalidade de cada um. 

    Ordenhar a vaca, cozinhar batatas para o café da manhã, organizar a casa e esperar o marido voltar. A rotina de Abigail é acompanhada com muito carinho pela câmera e torna-se uma espécie de ritual. Embora seu lar seja normalmente calmo, o relacionamento com Dyer possui uma confusão interna que pode ser percebida não por gritos, mas pelo silêncio que impera entre eles. Se houve tantas reclamações (por vezes, exageradas) sobre a falta de paixão entre as protagonistas de Ammonite (2020), esta indiferença está no local certo aqui.

    "Assombro e alegria" é o que ela encontra com a fascinante Tallie. Enquanto as palavras custam a ser externadas diante do companheiro, a vizinha desperta sensações difíceis de ser processadas, até que algo além da amizade começa a surgir. Entretanto, é tudo muito confuso; "há algo acontecendo entre nós que eu não consigo desvendar", diz Abigail. Como mulheres da década de 1850 podem entender sobre sua própria sexualidade quando o mundo não permite que elas vejam nada além da obrigação de se casar com um homem e constituir uma família (no sentido mais tradicional e opressor da palavra)?

    A maneira como é trabalhado o ambiente que cerca os personagens é muito interessante, já que a narrativa está estritamente ligada a natureza. No início, estamos no inverno gelado e devastador. É aqui que a vida de todos encontra-se na mais cruel apatia, até que o gelo vai derretendo aos poucos, à medida que as amantes tornam-se mais íntimas. A primavera traz o apogeu daquele amor inesperado, quando o meio opressor cede espaço para um refúgio que as protagonistas encontram no meio da floresta, onde elas conseguem despir-se das amarras sociais e exibem sua verdadeira natureza. Em uma dessas cenas, quando elas se espantam por um barulho no meio do mato, o predador temido não é um animal qualquer, mas o pior deles: o homem. Contudo, uma hora a primavera precisa deixar que o verão ocupe seu lugar no ciclo das estações. É quando essa felicidade entra em combustão, e as chamas doem bem mais que o frio do inverno, pois as personagens experimentam não apenas a falta de amor, mas a saudade deste.

    O roteiro de Ron Hansen e Dávid Jancsó (e baseado na obra de Jim Shepard) conta a história em uma estrutura que remete aos textos escritos por Abigail. Um filme baseado em narração é uma faca de dois gomes: ao mesmo tempo que pode tornar a narrativa didática e/ou cansativa, também pode evocar um tom único (como nos filmes de Terrence Malick). Felizmente The World to Come encaixa-se no segundo caso, encontrando sua força nas palavras poéticas proferidas pelas protagonistas, mas sem nunca esquecer que o cinema é uma arte audiovisual. A fotografia de André Chemetoff faz o balanço necessário e concebe composições memoráveis de extrema beleza, como numa cena no meio de uma nevasca ou nos planos bem fechados em Tallie, quando Abigail está conhecendo-a e admirando os detalhes que a deixam tão desconcertada.

    Affleck e Abbott estão muito bem em seus papéis secundários, principalmente o primeiro em todo o seu minimalismo. Waterston é a âncora que fixa o tom da narrativa, conduzindo o espectador por uma jornada de rancor, paixão, destruição e esperança. Kirby, depois de encenar em Pieces of a Woman um dos partos mais realistas que já vi na tela, é a responsável por dar vida a uma personagem complexa em seu mistério inicial e na sua intensidade exibida em todos os momentos que aparece.

    A diretora reserva para o final o motivo da explosão de sentimentos que senti. Quando o longa evoca o poder da imaginação, uma enorme quantidade de pensamentos passaram pela minha cabeça. É imaginando o futuro que o ser humano encontra a força para seguir em frente, mesmo nos dias mais desesperadores. Em uma sociedade que mata e oprime quem é diferente, só a esperança de um mundo melhor que está por vir pode nos manter firmes.

Texto escrito por Matheus C. Fontes e publicado como parte da cobertura do Festival de Cinema de Sundance 2021

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Capitu e o Capítulo (2021)

Mangrove (2020)

Oscar 2022: Apostas para as Nomeações