A Nuvem Rosa (2021)



A NUVEM ROSA

Direção: Iuli Gerbase

Ano: 2021

País de origem: Brasil

    Plano geral de uma cidade brasileira. De repente, nuvens rosas condensam-se rapidamente no céu. O rosa e azul evocam um tom de fantasia, como se fosse o mundo imaginado por uma criança. Talvez seja o resultado da mente do garoto que aparece em seguida, andando no parque com seu cachorro. Uma das nuvens vem ao encontro dele e, então, descortina a cruel realidade por trás das lindas imagens. O menino cai morto no chão.

    Com uma boa recepção de público e crítica, o filme brasileiro A Nuvem Rosa teve sua estreia mundial na última sexta-feira (29), durante a edição online do Festival de Sundance 2021. Este é o longa de estreia da diretora gaúcha Iuli Gerbase, que já chega como um nome para se prestar bastante atenção no cenário nacional. A história apresentada centra-se em Giovana (Renata de Lélis) e Yago (Eduardo Mendonça), que haviam passado a noite juntos pela primeira vez quando os trágicos eventos começaram a acontecer. Uma sirene toca e alto-falantes pedem que todos permaneçam dentro de suas casas e tranquem tocas as portas e janelas imediatamente. Nos noticiários, as autoridades dizem tratar-se de um gás desconhecido que leva à morte após 10 segundos de exposição, sendo o lockdown a única forma conhecida de proteção até o momento.

    Soou familiar? Pela sinopse, qualquer um pensa que é um projeto surgido a partir da pandemia da COVID-19, mas não é esse o caso. Já no início da projeção, aparece um aviso de que o roteiro foi escrito em 2017 e as gravações ocorreram durante 2019, ou seja, antes de o mundo passar pelo pesadelo representado pelo ano passado. Este aspecto premonitório talvez tenha sido a principal arma para atrair atenção internacional em Sundance, embora suas qualidades não se restrinjam a isso. No entanto, mesmo com o pedido da diretora, no início da sessão, para não limitarmos o filme apenas a comparações, é impossível não realizar essa tarefa.

    Um fato interessante é que essa terrível coincidência acaba provocando sentimentos mistos: as semelhanças com a realidade tornam a experiência ainda melhor do que se nada tivesse acontecido, ao mesmo tempo que as diferenças são ressaltadas exatamente por termos vivido o isolamento social. Por exemplo, a forma como as pessoas passaram a se comunicar à distância é bem representativa dos dias de hoje, explorando muito bem as telas que se transformaram em janelas para o mundo exterior. Por outro lado, algumas resoluções de problemas são um tanto difíceis de acreditar, mesmo com a naturalidade provocada pela direção e pelas atuações, tornando tudo verossímil na medida do possível.

    Diante do cinema socialmente engajado que é produzido no Brasil, é importante notar a decisão de Gerbase em afastar-se de questões sociopolíticas, encontrando o foco da narrativa no estudo dos personagens. Ela não está preocupada em discutir as repercussões do lockdown na vida da classe trabalhadora, o que constitui um certo problema, pois todos nós presenciamos um aumento do abismo social que assola o país, fazendo até um governo de extrema-direita abrir mão de suas pretensões liberalistas quando viu como estas são insustentáveis em nossa realidade. Contudo, uma explicação para a falta de tais discussões pode ser a classe social mais abastada dos protagonistas, pessoas que custam a olhar para aqueles abaixo de si na pirâmide social. A hipocrisia dessas pessoas pode ser vista na cena na qual Giovana questiona sobre os moradores de rua no meio do sexo e logo se esquece em prol de seu próprio prazer.

    O estudo promovido em torno do casal é muito bom, explorando a diferença entre suas personalidades e entre a forma como ambos lidam com o caos vivido. Enquanto Giovana está sempre atenta às notícias e à tortura de viver trancada em um apartamento, Yago parece tentar fugir da realidade fora daquelas paredes, evitando qualquer conexão com o exterior. Em certo ponto, ele até passa a enxergar a nuvem rosa como algo positivo, que propiciou a vida que tem agora, passando a encontrar no gás alguma forma de divindade. Dessa forma, o roteiro explora, de maneira eficiente, a tendência do ser humano em achar significado para sua trágica condição, preferindo acreditar em algo (impassível de explicação) que confira propósito a tudo.

    Em alguns momentos, a diretora promove situações que beiram o bizarro, causando um desconforto em quem assiste, algo muito comum em boa parte dos filmes produzidos pela A24. Isto está bem presente no arco do pai (Girley Paes) de Yago, um homem idoso que ficou isolado com o enfermeiro, desencadeando uma série de questionamentos no espectador. A relação da protagonista com sua irmã também desperta puro terror a partir de uma revelação no terceiro ato. Mas nada comparado com as perguntas que ficam sobre o futuro de Rui, uma criança nascida e criada sem contato físico com o mundo.

    A direção de Gerbase é eficiente ao provocar a sensação de isolamento ao manter sua câmera quase integralmente dentro do apartamento de Giovana, com exceção de poucos planos gerais da cidade, mas sem nunca mostrar outras pessoas a não ser através de janelas e de monitores. Ao mesmo tempo, Yago contenta-se com sua vida ali dentro, impossibilitando que a ideia de claustrofobia seja trabalhada. Por isso, mesmo em quadros mais fechados durante uma dinâmica de plano e contraplano, a diretora joga os atores para os extremos do quadro, permitindo que o grande espaço diante de seus olhos transmita uma ideia contrária ao aprisionamento.

    Uma qualidade importante de seu roteiro é a abordagem em torno da sexualidade do casal. O convívio diário entre eles precisa ser alimentado por algo ou sua relação pode ficar insustentável. Pela limitação de possibilidades, o sexo é o principal combustível disponível. É neste estudo de relacionamento que o filme encontra alguns de seus melhores momentos, pois provoca perguntas a respeito do que sustenta a união amorosa entre seres humanos.

    O texto, no entanto, também possui seus problemas, representados principalmente pela construção deste novo mundo. Como já apontado, a resolução de alguns problemas é problemática, como o fornecimento de suprimentos, que é baseado em uma ação governamental incompatível com nossa realidade. Como as fábricas continuaram funcionando? E a manutenção de energia, água e gás? São perguntas que a diretora tenta não perder tempo respondendo, mas que acabam fazendo falta. Outra questão é o comportamento da nuvem, algo que não recebe tanta importância e resume-se a uma pergunta de Giovana sobre o motivo de não passar pelas frestas de janelas e portas, como se o roteiro estivesse tentando mostrar que também não tem resposta para uma pergunta que qualquer um faria.

    A direção de fotografia de Bruno Polidoro utiliza o rosa como base para as composições visuais, promovendo o contraste entre as sensações positivas transmitidas usualmente pela cor com o terror provocado na narrativa. A montagem é uma das melhores do cinema brasileiro recente, principalmente em relação à passagem de tempo. Todo o filme liga-se através de elipses constantes, o que poderia tornar a narrativa episódica. Mas os pulos temporais são tão bem pensados e ocorrem com tanta naturalidade que apenas beneficia o ritmo, como em uma sequência onde existe um corte cronológico em meio a plano-contraplano.

    Contando com boas atuações de Eduardo Mendonça e de todo o elenco de apoio, o filme encontra sua verdadeira força em Renata de Lélis, capaz de conferir complexidade até em suas pequenas ações cotidianas, além de mudar rapidamente de expressão em uma mesma cena de maneira natural. Sua personagem é a bússola emocional do longa, levando o espectador a experimentar os mais diversos sentimentos. Ela é o mais puro e cruel retrato do carrossel emocional que todos sentimos durante a quarentena.

Texto escrito por Matheus C. Fontes e publicado como parte da cobertura do Festival de Cinema de Sundance 2021

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