Marte Um

MARTE UM

Direção: Gabriel Martins

Ano: 2022

País de origem: Brasil

    Na noite do dia 28 de outubro de 2018, lembro da sensação de incerteza e angústia em relação ao futuro do país e dos brasileiros, uma sensação que nunca havia sentido antes com tamanha ressonância. Pela primeira vez desde que nasci, um político de (extrema) direita era eleito presidente democraticamente. A população, inclusive amigos e familiares, estava expressando que queria um homem misógino, homofóbico e racista como chefe de governo. Como processar essa informação quando sua existência parece não fazer parte da ideia de país defendida pela pessoa escolhida para administrar o cotidiano brasileiro?

    É no meio dessa sensação de desnorteamento que Marte Um começa, acompanhando uma família negra de classe média baixa num Brasil onde o ódio pelo diferente parece emergir de cada canto, separando o país em extremos opostos. Rupturas são abertas também entre gerações: passado e presente vão de encontro entre si, enquanto o futuro guarda inseguranças, dúvidas, mas também sonhos. Para explorar todos esses temas, o diretor Gabriel Martins utiliza uma abordagem humanista não muito vista no cinema brasileiro contemporâneo, decisão que carrega concomitantemente um frescor na forma como o audiovisual enxerga nosso país e problemas inerentes ao tipo de narrativa adotada.

    O que pais planejam para seus filhos nem sempre é o que estes imaginam para si. O choque de Wellington (Carlos Francisco) e Tércia (Rejane Faria) com a universitária Eunice (Camilla Damião) e o pequeno sonhador Deivinho (Cícero Lucas) parece ser o ponto de partida para o desenvolvimento de seus personagens, cujos conflitos são explorados com carinho pelo filme, sempre atento aos acontecimentos cotidianos. Seja no trabalho, na vida amorosa ou nas brincadeiras com os amigos, a câmera está interessada em registrar os pequenos gestos e olhares que constroem a complexidade cada um.

    É parte da natureza do cinema brasileiro ser político e Martins não nega isto em sua filmografia, embora nunca reduza seus personagens a tais aspectos, como raça ou condição financeira. Estes são fatores introduzidos como parte de suas vidas, mas não definidoras. Todo o núcleo de Wellington como trabalhador de um prédio de luxo expressa bem as discussões sociais que o diretor quer levantar, mas é a expressão facial do ator numa cena chave que reforça aquilo. O público vê a humanidade dele e se importa exatamente pela construção de personagem, o que apenas potencializa o discurso político.

    Embora a abordagem humanista-realista do longa nem sempre permita a criação de uma mise-en-scène mais interessante do ponto de vista formal, o roteiro e as atuações conseguem carregar o que há de melhor nesse tipo de narrativa, sendo capazes de levar o espectador numa viagem emocional que tem sua catarse no terceiro ato. Não tem como não falar do trabalho de Rejane Faria, cujo rosto carrega grande parte de suas cenas: é interessante notar que seus melhores momentos não são aqueles de explosão, mas os de introspecção, como num close-up no qual sentimos muito mais seus traumas através dos olhos do que das linhas de diálogo.

    Se o filme inicia com o céu estrelado da noite em que Bolsonaro é eleito presidente do país, nada melhor do que fechar com a esperança de um céu que pode parecer o mesmo, mas que cobre um Brasil completamente diferente, mais unido e cheio de amor. Que vontade de conseguir dormir, assim como Tércia, e sonhar com esta nova realidade. E não poderia ter ano melhor para lançar este filme, um convite para um futuro de conciliação.

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