#10 Mostra de São Paulo 2020

 

A PASTORA E AS SETE CANÇÕES

Direção: Pushpendra Singh

Ano: 2020

País de origem: Índia

    Após ser exibido no Festival de Berlim deste ano atípico, A Pastora e as Sete Canções estreou no Brasil através da Mostra Internacional de São Paulo, proporcionando aos brasileiros um mergulho em uma cultura tão diferente, mas que apresenta problemas sociais tão semelhantes. O diretor Pushpendra Singh deu vida ao filme a partir de um poema do século XIV, que possui um caráter místico. Este é incorporado ao tom da obra, que varia entre o naturalismo e a fantasia, mas sem nunca perder o foco de seus personagens e das denúncias sociais que estão sendo feitas.

    Laila (Navjot Randhawa) é uma jovem mulher cuja família sente a constante necessidade de pressioná-la para que se case logo, seguindo as tradições de seu povo. Ela, no entanto, tenta insistentemente rejeitar seus pretendentes, sendo Tanvir (Sadakkit Bijran) o principal entre eles. Em um de seus primeiros momentos, o longa faz questão de mostrar que o mal daquela realidade não são os homens, mas a cultura sexista e opressora que é imposta a cada indivíduo, propagada de geração em geração. Isto pode ser observado na cena em que um pretendente precisa levantar uma rocha no meio de outros homens como uma prova de sua força e masculinidade.

    Dividido em sete canções, que funcionam como capítulos, o filme gira em torno da protagonista, cuja voz é pouco escutada em comparação aos personagens masculinos, mas que consegue demonstrar exímia força diante das opressões às quais é exposta. Diante das investidas sexuais de autoridades civis da região, ela ainda é obrigada a lidar com a passividade do marido, que prefere que a esposa não aja com agressividade, submetendo-a a uma situação insustentável.

    Com a persistência de Mushtaq (Shahnawaz Bhat), Laila decide ceder aos desejos dele e marca um encontro à noite. Entretanto, o que segue é uma sequência de tentativas frustradas, já que ela faz questão de sempre despertar o marido. O humor é inserido de forma orgânica e eficaz, fazendo com que o elemento da comédia, aliado ao tema do patriarcado, faça surgir cenas tragicômicas. Estas fazem o público rir ao mesmo tempo que reflete a tragédia da vida daquela mulher. No entanto, não é esse o tom final dado ao arco dramático, pois um outro elemento é introduzido: os desejos sexuais da protagonista.

    A direção é muito perspicaz ao tratar a sexualidade de Laila de uma forma tão sensível. São várias as cenas em que vemos Tanvir praticamente impor o sexo a sua esposa, que deve praticá-lo quase como uma obrigação. Importante destacar que a gravidez é algo que também é imposto logo nos primeiros meses após o matrimônio, refletindo como a história sempre tentou encarar as mulheres como uma fonte de fertilidade, o que pode ser observado em uma das primeiras representações femininas na arte, a escultura Vênus de Willendorf.

    Apresentando um senso estético e plástico maravilhoso, o projeto beneficia-se de um excelente trabalho de fotografia e de direção de arte, dois setores que foram inspirados por imagens cristãs. Estas foram referências trazidas pelo diretor, que associou o ofício de pastoreio da protagonista com a figura de Jesus Cristo. A partir destas inspirações, o diretor de fotografia Ranabir Das constrói planos belíssimos que fundem os personagens com a natureza que os rodeia. A utilização de uma palheta de cores fortes e diversas nos figurinos confere o tom fantástico da narrativa e, concomitantemente, as paisagens naturais conferem o tom realista.

    As metáforas visuais e textuais estão presentes ao longo de todo a obra, destacando-se os planos que contemplam o fogo saindo de dentro de árvores, em uma representação do desejo sexual de Laila. Entretanto, o último capítulo é o que apresenta a mais bela dessas construções, ao associar a troca de pele das cobras a uma forma de renovação e libertação, que é exatamente oque a protagonista precisa, culminando em uma cena final poética e poderosa.

    O machismo estrutural apresentado não é algo restrito apenas àquela realidade retratada pelo filme. Infelizmente o patriarcado está enraizado na cultura de todos os cantos do mundo, tornando a narrativa tão universal e importante. No Brasil, no dia que escrevo este texto, permanece a revolta nas redes sociais sobre a decisão do juiz de declarar "estupro culposo" no caso Mariana Ferrer, além de o colunista Rodrigo Constantino ter relativizado a condição das vítimas em casos de estupro. Todo este pesadelo social e político que estamos vivendo e a narrativa do longa de Pushpendra Singh apenas expõem o horror representado pelos pensamentos da extrema direita, de conservadores e de fundamentalistas religiosos. Mas resta a esperança de que, algum dia, possamos arrancar esses males que revestem nossa sociedade e caminhar rumo a um horizonte de liberdade e equidade.


Texto escrito por Matheus C. Fontes como parte da cobertura da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

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