The Underground Railroad (2021)

Foto: Amazon Studios


THE UNDERGROUND RAILROAD

Direção: Barry Jenkins

Ano: 2021

Número de episódios: 10

País de origem: EUA

    O cinema constantemente abordou a história de pessoas pretas ao longo das décadas, desde a narrativa repugnante de O Nascimento de uma Nação (1915), passando pela escravos contentes de E o Ventou Levou (1939) e A Canção do Sul (1946) até finalmente chegar numa época na qual afro-americanos finalmente conseguiram autorização de Hollywood para contar suas próprias histórias, como Spike Lee e suas constantes discussões sobre tensões raciais nos Estados Unidos.

    Como um homem branco, não é fácil escrever textos sobre obras que têm pretos como seu foco principal, especialmente considerando-se a imensidão dos questionamentos que estão cada vez mais sendo levantados sobre racismo e representatividade (não que sejam temas recentes, pelo contrário, desde que os europeus foram à África e começaram a comercializar nativos em diversas partes do mundo, essas questões tornaram-se relevantes). Já dissertei brevemente sobre minha limitação crítica enquanto espectador de produções focadas em determinados grupos sociais, mas aqui torna-se altamente relevante porque a maneira como escravos estadunidenses são representados no cinema é pauta onipresente quando um diretor decide contar tais histórias.

    Seria justo mostrar mais uma vez (depois de inúmeras obras semelhantes tematicamente) pretos sendo chicoteados, torturados e massacrados apenas para reforçar a degradação provocada historicamente na vida desses indivíduos? Eu não tenho a menor pretensão de responder a essa pergunta, pois não sou eu que sinto na pele a dor causada a essas pessoas. Se você, caro leitor, esperava justamente isso do meu texto, aconselho buscar críticos pretos que produzem peças riquíssimas para grandes e pequenas mídias. São esses que cresceram sentindo o mesmo ódio racial que está em toda parte na nova minissérie da Amazon Prime Video, uma dor passada de geração em geração que parece nunca cessar, assim como dons e dores são passados de pai para filho e de mãe para filha ao longo dos episódios.

    No piloto da produção, parece que fomos jogados em mais uma narrativa de escravos tentando fugir de uma fazendo de algodão. Cora (Thuso Mbedu) nasceu e cresceu na propriedade que centraliza esse primeiro episódio e que é também o ponto de partida de uma jornada excruciante, mas também transformadora, através de diversos estados do país. Quando Caesar (Aaron Pierre) tenta convencer nossa protagonista a escapar daquela realidade em busca de liberdade, tudo parece tão familiar que alguém que desconhece a sinopse da minissérie realmente pensaria que já viu aquilo diversas vezes, principalmente pelas imagens exibidas em seguida.

    Um escravo fugido é trazido de volta à propriedade (e à condição de propriedade) em uma gaiola de ferro, depois de ser capturado pelo intrigante Ridgeway (Joel Edgerton), um homem que ganha a vida prendendo aqueles que tentam fugir de seus "proprietários", acompanhado pelo pequeno Homer, adicionando mais complexidade a esse arco da produção. Qualquer espectador com um mínimo de conhecimento histórico sabe muito bem o que irá se desenrolar após a chegada do comboio. No entanto, a obra torna a situação ainda mais cruel do que poderíamos imaginar: depois de testemunharmos uma cena de chibatadas em um tronco (envolvendo uma criança e uma mulher), a direção guarda o momento mais cruel para o mesmo episódio, um choque que provavelmente irá afastar muitos daqueles que darão o play.

    Essa sequência é essencial para entender a dificuldade em se debater a abordagem diante de tal uso temático. Parte do público pode argumentar que estão cansados de verem pretos sendo representados sob degradação moral e física imposta pelos brancos; outra parte pode dizer que essa decisão criativa é muito importante, pois a humanidade não pode esquecer dos horrores infligidos pela escravidão e que ainda se perpetuam atualmente. Discutir estas perspectivas, como eu já falei previamente, não é meu objetivo, além de estar distante de minhas capacidades. Entretanto, eu posso debater decisões formais e estilísticas, como a forma poética com a qual Jenkins costuma filmar seus longas e que continua aqui.

    Em Moonlight (2016), ele e seu diretor de fotografia James Laxton constroem planos que ressaltam a poesia inerente à vida do protagonista, ao mesmo tempo que explora os sofrimentos daquela mesma realidade, sem criar um paradoxo moral em sua abordagem. Mesmo quando a dupla utiliza essa identidade visual em momentos emocionalmente impactantes, ela apenas contribui para transmitir aquele sentimento opressor imposto ao personagem. No caso de Se a Rua Beale Falasse (2018), esse tom poético acaba sendo ainda mais eficiente pela narrativa extremamente romântica, ao mesmo tempo que o diretor não exclui a crueldade da sociedade racista. 

    Entretanto, The Underground Railroad é um caso completamente diferente. Embora a constante influência romântica sobre a obra de Jenkins também possa ser sentida em alguns momentos (especialmente em parte do 8º episódio), o peso sociopolítico é muito maior do que em seus longas exatamente por causa do contexto histórico no qual os personagens estão inseridos. O que domina a minissérie não é o amor, mas o ódio perpetuado pela escravidão e pelos ideais racistas do sul dos Estados Unidos. Filmar uma cena de tortura e assassinato com as mesmas técnicas utilizadas para gravar um casal se apaixonando é uma decisão estilística que exemplifica muito bem os problemas pontuais da produção.

    Depois de tantos parágrafos discutindo essa abordagem formal da direção diante da temática, é realmente compreensível questionar as quatro estrelas dadas. Eu dediquei a maior parte deste texto a essa questão porque é aquela mais relevante para ser levantada. No entanto, isso não diminui em nada os incríveis feitos alcançados pelos demais episódios. Já no final do piloto, a comum história de fuga dos escravos é relida a partir do premiado livro homônimo, escrito por Colson Whitehead. A ferrovia subterrânea, um mito espalhado entre os pretos escravizados nos estados sulistas, era a representação da almejada liberdade, uma via pela qual eles poderiam finalmente viver sem um "dono".

    O livro e a minissérie dão vida a esse conto de fadas, transformando o que poderia ser algo que já foi mostrado diversas vezes no cinema e na televisão em algo novo. É justamente nesse uso do mito que o estilo audiovisual do realizador encontra sua razão, algo bem evidente já na primeira cena subterrânea, quando a luz do trem é mostrada poeticamente, simbolizando esse sonho de liberdade, de fuga e de descoberta de um mundo cheio de possibilidades. Claro que os diferentes cenários aos quais esses trilhos vão levar os personagens não são necessariamente bons: com a narrativa sendo convertida em uma espécie de road movie (ou road TV show), levando Cora a enfrentar o racismo em suas diversas facetas e a conhecer diferentes pessoas, essenciais para seu processo de descoberta do mundo e principalmente de autodescoberta.

    Dentre esses personagens, está a pequena Grace, uma das poucas divergências em relação ao material-base, e o incrível Jasper (Calvin Leon Smith), duas provas da capacidade de Jenkins em trabalhar brilhantemente com coadjuvantes, mesmo com um tempo de tela bem reduzido (e ele acaba se beneficiando da estrutura episódica para isso). Mas o desenvolvimento nenhum deles se compara com o de Ridgeway, que é estudado brilhantemente pelo roteiro (as seis mãos não chegam a atrapalhar em momento algum) e pela atuação de Edgerton, a cara mais conhecida em meio a um elenco sem grandes estrelas, mas com grandes performances. Existe um episódio dedicado a explorar especificamente o passado do caçador, algo crucial para que ele alcance seu nível de complexidade, fugindo do caráter unidimensional que é empregado com frequência nesse tipo de personagem.

    Depois de um clímax técnico e narrativamente primoroso nos capítulos 8 e 9, Jenkins guarda um fechamento poético e metafórico para sua primeira aventura na televisão. Muito bem descrito pela sinopse, o último episódio é uma "história sobre a maternidade", uma dádiva do corpo feminino, passado de mãe para filha, um ciclo que se repete e que oferece a Cora a oportunidade de finalmente perdoar sua mãe. A minissérie fecha não apenas com a cura da ferida aberta entre essas duas mulheres, mas com a esperança de que possamos curar a dor perpetuada de geração em geração contra a população preta, uma ferida aberta desde a escravidão e que continua a ser machucada a cada batida policial que mata homens e mulheres por causa de sua pele, seja em uma rua dos Estados Unidos ou em uma favela brasileira.

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