Estou pensando em acabar com tudo (2020)



    Texto escrito por Matheus C. Fontes

    Alerta de spoilers!

    Quando soube que Charlie Kaufman iria adaptar um livro, me espantei justamente por ele ser conhecido por sua originalidade nos roteiros desde seu primeiro trabalho em Quero ser John Malkovich (1999). Ao ler a obra original, pude entender sua decisão, já que parecia ser uma história do próprio Kaufman com todas as suas características: a estranheza dos acontecimentos, o estudo de um relacionamento e da psique humana. Mas o que é apresentado ao público não é apenas a concretização do livro, mas a visão pessoal do realizador, que entrega o que eu considero seu trabalho mais seguro na direção.

    O meu principal problema com o livro é que, ao utilizar a estrutura de thriller, o autor Iain Reid tenta criar um plot twist no final. Porém, ao mesmo tempo, ele entrega pistas demais ao longo dos capítulos e é possível entender grande parte do que está acontecendo logo no início da leitura. Kaufman, ciente disso, abandona a tentativa de plot final e deixa que o espectador compreenda aos poucos do que o filme se trata. E é interessante perceber como os primeiros planos do filme são colocados de forma a explicar o teor da história: ao mostrar diferentes cantos da casa, o diretor cria uma metáfora visual que resume tudo que será apresentado ao longo da projeção - a visualização de diferentes cantos da mente do protagonista.

    Subvertendo o subgênero de road movie, estamos acompanhando uma viagem pela mente de um senhor de idade que trabalha como zelador em uma escola. Diferente do livro, não temos uma explicação detalhada da vida daquele homem; uma decisão tomada talvez com o propósito de constituir a universalidade da arte que os próprios personagens discutem em certo momento: tornar universal uma história tão pessoal. Além disso, propicia que tenhamos nossa próprias conclusões e interpretações. Cada personagem é uma parte do consciente/subconsciente do zelador, sendo a estrada e todos os cenários a sua própria mente. Quando a atendente da sorveteria pede para a personagem interpretada pela Jessie Buckley (em uma ótima interpretação) não seguir em frente, talvez seja a parte do subconsciente que teme pelo que vai acontecer caso ela chegue mais perto das partes mais profundas - sendo interessante perceber como a estrada fica cada vez mais escura e gelada. Quando a escuridão toma conta de todos o ambiente fora do carro, teve momentos que eu me perguntei se era o carro que estava se movendo contra o vento ou se ele estava parado e apenas o vento soprasse contra: afinal, nós passamos pela vida ou ela passa por nós?

    Mesmo trabalhando com uma história que não foi escrita originalmente por ele, seu roteiro tem personalidade própria. Respeitando o livro, Charlie Kaufman traz a sua própria versão com decisões milimetricamente pensadas e com diálogos que retratam pensamentos e debates internos do zelador, mantendo a natureza intelectual dos originais. Destaque para o trecho em que o casal protagonista fala sobre o filme Uma Mulher Sob Influência (1974), que, ao mesmo tempo em que funciona em si mesmo, também é um simbolismo sobre a natureza da protagonista, que se encontra sob influência do ambiente a sua volta. Ela é a figura mais intrigante do longa e pode ter diferentes interpretações. Pode ser a representação de uma namorada real que o zelador teve ou a figura metafórica da idealização da namorada que ele nunca conseguiu alcançar. Mas também pode ser a figura concreta do pensamento de "acabar com tudo".

    Toda a parte técnica do projeto está em função da história e possui momentos de puro brilhantismo. A fotografia de Łukasz Żal utiliza a relação de aspecto em concordância com a narrativa, simbolizando a mente humana. Também é interessante perceber como a luz dentro da casa dos pais de Jake muda à medida que a linha temporal é alterada e como a fotografia passa a utilizar cores quentes exatamente no momento em que eles aparecem para o casal protagonista pela primeira vez. O porão - a representação de uma parte tão profunda e escondida que Jake o mantém trancado e não consegue adentrar - está mergulhado em cores mais frias que os outros cômodos. Tive um estranhamento inicial com a edição que apresenta uma natureza fragmentada em certos momentos por cortar sempre entre planos filmados em posições diferentes, quebrando a previsibilidade do plano/contra-plano, mas percebi que é uma decisão muito acertada, já que a mente humana não corre de forma linear pelos pensamentos, o que também explica a linha temporal não linear dentro da casa dos pais. A mixagem de som é utilizada de forma significativa em certos momentos, mantendo certas falas mais abafadas para demonstrar o distanciamento (não físico, mas em termos de profundidade mental) entre os personagens. Além disso, quando o celular da protagonista toca dentro casa, o som foi mixado de forma a parecer que está em todo o ambiente, já que é uma tentativa de comunicação dentro da própria cabeça do zelador. Entre as interpretações, o grande destaque fica com Toni Collette, que entrega uma performance que resume toda e estranheza do filme e consegue variar entre as expressões de alegria e tristeza de forma admirável.

    Há muitos outros elementos que demonstram a genialidade presente no filme. Dentre eles, destaca-se: o cachorro molhado que não para de se sacudir, aumentando a estranheza crescente; a foto que muda de rosto mostrando que o casal faz parte da mesma pessoa; as pinturas presentes no porão simbolizando a tristeza/melancolia.

    Chegamos, então, ao último ato, que também tem momentos de brilhantismo como o musical, o ápice dos sentimentos e discussões internas do zelador. O palco da última cena é o palco da vida? É uma metalinguagem com o próprio filme? Mas também apresenta meu único problema com o filme, que perde a firmeza ao metaforizar de tantas formas o que acontece com o protagonista. Mesmo assim, continua sendo uma obra belíssima, devastadora, profunda e meu favorito do ano (até agora).

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